Roberto Keller cresceu num subúrbio da Cidade do México, onde capturava insectos nos terrenos baldios do seu bairro em construção. Hoje, aos 53 anos, a viver em Portugal desde 2008, continua a investigar estes organismos e cuida também das várias coleções entomológicas e de aracnídeos do museu da Rua da Escola Politécnica, em Lisboa. Fique a conhecer o autor principal da sexta crónica da série “Guardiões das Flores”, sobre a importância das coleções de polinizadores.
O que estás a fazer atualmente como investigador?
Sou entomólogo, especialista em anatomia comparada e morfologia evolutiva, com especial atenção aos insectos sociais. Trabalho como investigador no Museu Nacional de História Natural e da Ciência (MNHNC), onde sou o curador de entomologia. Sou também investigador no Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais, na Universidade de Lisboa.
O meu interesse como investigador é entender a relação entre a forma e a função, ou seja, como é que determinadas especializações morfológicas melhoram a forma como os organismos realizam tarefas ecológicas e de comportamento e também estudar como é que o ambiente no qual um organismo se desenvolve resulta em mudanças na sua morfologia.
Os insectos são excelentes para estudarmos estas questões, por serem pequenas máquinas constituídas por uma série de módulos independentes (mandíbulas, antenas, olhos, patas, asas), mas que funcionam de maneira integrada. Cada módulo pode ser estudado individualmente, comparando a sua variação estrutural entre diferentes espécies com hábitos e comportamentos variados. Podemos perceber, por exemplo, como têm evoluído as patas entre insectos rastejantes, corredores ou saltadores.
Os insectos sociais apresentam ainda um outro nível de complexidade para estes estudos, porque cada indivíduo passa ser uma peça que integra o “superorganismo” que é a colónia. Assim como um insecto pode ter mandíbulas especializadas para realizar uma tarefa de forma efetiva (furar madeira, por exemplo), um superorganismo tem grupos de indivíduos especializados (castas) que optimizam as funções necessárias de uma colónia, como a reprodução, a procura de alimento ou a defesa do ninho.
O meu trabalho como curador consiste na preservação, catalogação e gestão da coleção de insectos do museu. Podemos pensar nas coleções de história natural como “bibliotecas” de biodiversidade, e o meu papel como “bibliotecário” é organizar a biodiversidade de insectos preservados e a maneira de facilitar o seu estudo e consulta por especialistas e pelo público em geral. Para isto tenho que saber um pouco sobre todos os tipos de insectos, sejam polinizadores ou não.
Os pedidos de consulta que recebo todas as semanas são muito variados. Por vezes borboletas ou traças, escaravelhos ou percevejos, grilos ou gafanhotos. Aliás, recebo igualmente pedidos de consultas acerca de aranhas ou escorpiões, porque também trato da coleção de aracnídeos. Estes pedidos vêm maioritariamente de outros investigadores, especialistas nalgum desses grupos, mas também temos pedidos de consulta por parte de artistas, jornalistas, educadores e empresas.
Por vezes, é engraçado abrir o email de manhã e encontrar alguém que se lembrou de perguntar se temos joaninhas preservadas para um fim qualquer (sim, temos!).
Como é que começaste?
Comecei a fazer coleções de insectos desde que tenho memória. Cresci num dos subúrbios que estavam ser construídos nas margens da Cidade do México. Na minha rua, eram poucas as casas e havia muitos lotes descampados à volta. Passei muito tempo a explorar, com a ajuda de guias de campo, a diversidade de plantas silvestres e a abundância de invertebrados ao pé da minha casa. Entretanto, a urbanização acabou por engolir todos aqueles sítios, mas ainda hoje conservo exemplares de algumas espécies de abelhas endémicas e outros insectos que já não podem ser observados lá.
Onde e como aprendeste a fazer o teu trabalho?
A história natural tornou-se parte do meu percurso profissional quando cursei a licenciatura em Biologia na Universidade Nacional Autónoma do México, onde frequentava a coleção de insectos da universidade, e que terminei em 1998. Isto continuou com o meu doutoramento em entomologia no Museu Americano de História Natural, em Nova Iorque, num programa conjunto com a Universidade de Cornell. Após a minha graduação em 2008, mudei-se para Portugal, e tenho vivido em Lisboa desde essa altura.
Na minha formação como biólogo, tive muitas oportunidades de fazer trabalho de campo envolvendo a exploração e a colheita de espécimes, e as áreas nas quais me tornei especialista — sistemática, taxonomia e morfologia comparativa — requereram sempre trabalhar com colecções científicas.
De facto, a parte mais técnica do trabalho com coleções não é normalmente ensinada nas aulas da universidade, mas foi uma competência que adquiri como aprendiz nos museus de história natural que percorri enquanto estudante. É por isso, em parte, que agora mantenho o meu próprio laboratório de entomologia no MNHNC: para dar oportunidade à nova geração de biólogos de serem aprendizes nas técnicas de criação, preservação, manuseamento e gestão de coleções de insectos. Acredito que este tipo de formação enriquece qualquer biólogo, independentemente da sua área de investigação.
Quando começaste, o que pensavas que querias fazer?
O meu fascínio pela biodiversidade levou-me a querer especializar no estudo da diversidade de espécies e de como estas estão aparentadas evolutivamente, isto é, sempre achei que iria ser um taxonomista. Isso mudou durante o meu doutoramento, cujo tema envolveu uma análise da morfologia dentro da família das formigas, com o intuito de reconstruir a filogenia deste grupo a nível mundial. Para o final da minha tese, apercebi-me de que estava mais interessado em estudar a morfologia, em si, do que em utilizar as características morfológicas como mais uma fonte de dados para classificar espécies.
Foi assim que passei de alguém que estuda espécies e as suas relações filogenéticas para alguém que estuda estruturas morfológicas e as suas relações de homologia, ou seja, que estuda as correspondências entre as estruturas de diferentes organismos que tiveram um ancestral comum. Tornei-me um “morfólogo”, embora nos últimos anos esteja a voltar para a taxonomia.
O que não tinha em mente era tornar-me o curador-chefe da coleção de insectos de um museu nacional. Quando em 2019 surgiu a oportunidade de ser integrado como investigador no MNHNC, a vice-diretora do museu lançou-me o desafio de reorganizar de raiz as coleções de insectos, os espaços das reservas e as infraestruturas. Aceitei e coloquei em prática toda a experiência que tinha acumulado enquanto utilizador de coleções científicas de museus em diferentes continentes.
O que ainda te falta descobrir?
O sentido da vida. Mas por enquanto fico satisfeito por continuar a descobrir novas espécies, com morfologias fascinantes e comportamentos surpreendentes.
Além de Roberto Keller, fique a conhecer outros investigadores envolvidos na série “Guardiões das Flores”, publicada todos os meses na Wilder: Catarina Siopa, Hugo Gaspar, Olga Ameixa, Elisabete Figueiredo e Andreia Miraldo.