Foto: Roberto A. Keller

Guardiões das Flores: A importância das coleções de polinizadores no presente e no futuro

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Para que servem hoje as coleções científicas de insetos e de outros espécimes guardadas nos museus portugueses? E faz sentido continuarmos a mantê-las? Saiba a resposta a estas e outras importantes questões na sexta crónica da série Guardiões das Flores, uma parceria entre a Wilder e o projeto PolinizAÇÃO, do CFE – Centro de Ecologia Funcional da Universidade de Coimbra.

Em 2024, quando uma aluna de doutoramento quis saber mais sobre a distribuição  da borboleta diurna Fritilária-do-Sul [Melitaea aetherie (Hübner, 1826)] em Portugal, não teve que percorrer o país à sua procura. Em vez disso, dirigiu-se ao Museu Nacional de História Natural e da Ciência (MNHNC), em Lisboa.

Lá, entre as paredes antigas do museu e rodeada de plantas e animais preservados há mais de 100 anos, procurou por espécimes desta rara borboleta, considerada uma espécie “Vulnerável” na Lista Vermelha dos Invertebrados de Portugal Continental, pois atualmente ocorre apenas em áreas restritas do Algarve e Baixo Alentejo. No entanto, os espécimes preservados no MNHNC e noutras coleções científicas em Portugal contam uma história mais profunda: esta espécie era comummente colhida nos 1940s na região de Lisboa, a mais de 200 quilómetros das populações atuais!

As colecções científicas consistem em autênticas bibliotecas que preservam e mantêm catalogados organismos completos ou partes dos mesmos, de modo a poderem ser consultados e estudados. Foto: Roberto A. Keller

Profundidade no tempo, amplitude no espaço

As coleções científicas, como as que são mantidas por museus de história natural e outras instituições de investigação científica, consistem em autênticas bibliotecas que preservam e mantêm catalogados organismos completos ou partes dos mesmos, permitindo que sejam consultados e estudados. A informação mínima associada à etiqueta de um espécime é a localidade e a data da sua colheita, ou seja, o “onde” e o “quando” daquele organismo em particular. A esta informação básica, segue-se a determinação da espécie feita por um especialista, normalmente um taxonomista. Com isto, cada espécime em coleção passa a servir de evidência física da presença dessa espécie num tempo e espaço definidos.

Esta evidência física é importante porque para a maioria dos organismos na Terra – incluindo muitas plantas e a maioria dos invertebrados (grupo ao qual pertencem a maioria dos polinizadores em Portugal) – só se pode determinar a espécie depois de se examinar a sua morfologia em detalhe, com o auxílio de uma lupa ou microscópio.

O estudo dos espécimes preservados em coleções por todo o mundo permite-nos mapear a biodiversidade a uma escala global, com provas que podem ser consultadas sempre que necessário. Dado que as coleções podem ter espécimes com mais de um século, desta forma também podemos avaliar como variou a distribuição das espécies ao longo do tempo. Este foi o caso da Fritilária-do-Sul, que, devido à sua preservação em coleções, sabemos que se extinguiu na área de Lisboa.

Quando preservado adequadamente, cada espécime em coleção pode contribuir para o conhecimento da história evolutiva da sua espécie: em particular, percebermos o que torna essa espécie única e quais as características que partilha com os seus parentes evolutivos próximos. Assim, os espécimes em coleções são a base da Taxonomia, a disciplina científica que se ocupa de estudar quantas espécies existem e como as organizar seguindo uma classificação.

Além da Taxonomia, a utilidade de um espécime preservado em coleção estende-se a muitas outras vertentes, como a ecologia, o comportamento ou a biologia básica. Cada espécime pode ser estudado de várias formas, incluindo a análise do seu ADN para conhecermos a composição genética da espécie e a sua dinâmica populacional. Usando técnicas robustas de recolha de imagem, é possível também reconstruir a sua estrutura morfológica em 3D e estudar, além das características físicas, as propriedades mecânicas (articulações, alavancas, músculos e sistemas hidráulicos) que permitem que um inseto sobreviva no seu habitat.

No caso dos polinizadores, a extração dos grãos de pólen presos ao seu corpo permite ainda identificar as espécies de plantas que esse polinizador visitou quando foi capturado, ajudando a reconstruir a comunidade vegetal da altura e as interações ecológicas.

Nos bastidores dos museus de história natural, assim como noutras instituições científicas, são mantidas coleções de organismos preservados sob condições de humidade e temperaturas controladas, para evitar o deterioramento por agentes físicos e o ataque por agentes biológicos (fungos ou insectos praga). Foto: Roberto A. Keller

Ética dos Museus  

Neste contexto, é pertinente questionar se ainda precisamos de continuar a colher e a preservar organismos em coleções científicas. Para organismos fáceis de identificar, como muitos animais vertebrados e até alguns insetos polinizadores (borboletas), as observações documentadas e/ou fotografadas são suficientes para monitorizar as suas populações. Podemos até capturar e libertar um animal depois de obter amostras que comprovam a sua identidade (como sangue no caso dos vertebrados). No entanto, existem razões científicas sólidas que justificam a importância de  continuar a colher e a preservar organismos nos dias de hoje.

Para começar, enquanto que o espaço e o tempo da colheita de um organismo são factuais e verificáveis, a presença de uma espécie na natureza será sempre uma hipótese. Isto deve-se ao facto de depender da informação disponível no momento em que a espécie foi delimitada, ou seja, definida.

Como sucede com qualquer hipótese científica, à medida que continuamos a obter mais informações sobre o mundo natural, a estimativa do número de espécies e a sua classificação e distribuição é refinada e atualizada. Um organismo pode assim hoje ser associado a uma espécie diferente daquela a que foi associado no passado. Ao revermos espécimes preservados em coleções, podemos manter o vínculo entre as nossas hipóteses científicas sobre as espécies e o mundo real.

Além do mais, é importante continuar a colher e a preservar organismos, não apenas por questões de taxonomia, mas para respondermos às necessidades de monitorização e conservação das espécies. De facto, as elevadas taxas de destruição de habitats e de extinção de espécies, causadas pelas atividades humanas, justificam a urgência em preservar as provas materiais da biodiversidade do planeta, e usar a informação contida nestas coleções para sustentar ações que mitiguem a perda de biodiversidade.

Vale a pena terminar com a nota de que muitas das técnicas tecnologicamente sofisticadas que se utilizam hoje para estudar coleções científicas não eram sequer imaginadas há meio século ou mais, quando alguns dos espécimes mais antigos foram colhidos e preservados. Da mesma forma, podemos apenas sonhar com as ferramentas que as futuras gerações terão à sua disposição para dar nova “vida” aos organismos que hoje preservamos diligentemente.


Saiba mais.

ARCADE  

Para abordar a questão básica, mas crucial, de quais são as espécies dos principais grupos de polinizadores – abelhas, moscas-das-flores e borboletas diurnas – atualmente representadas em coleções portuguesas, está a decorrer o projeto ARCADE, que junta as principais coleções científicas públicas nos Açores, Coimbra, Madeira, Lisboa e Porto. No projeto ARCADE está a ser feita a indexação destas coleções para criar uma lista atualizada das espécies disponíveis para consulta, ao mesmo tempo que se está a identificar as espécies e áreas prioritárias do país para novas colheitas. Ao garantir que a maioria das espécies de polinizadores de Portugal está acessível em coleções públicas, espera-se fornecer uma base sólida para o seu estudo, fomentando o seu conhecimento e conservação.

A equipa ARCADE está a indexar os insectos polinizadores preservados em coleções científicas portuguesas, para produzir uma lista atualizada das espécies que existem no continente e nas ilhas.  Foto: Roberto A. Keller

Roberto Keller trabalha como investigador no Museu Nacional de História Natural e da Ciência (MNHNC), onde é igualmente o curador de entomologia. É também investigador no Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais, na Universidade de Lisboa. Nesta crónica também colaboraram como autores Hugo Gaspar, Hugo Silva, José Manuel Grosso-Silva e Mário Boieiro, também investigadores. Carolina Caetano e João Loureiro, da Universidade de Coimbra, asseguraram a revisão do artigo. O texto foi ainda revisto por Inês Sequeira, da equipa da Wilder.

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