Macho de tartaranhão-caçador (Circus pygargus). Foto: Filippo Guidantoni/Palombar

Do trigo-barbela ao triticale, investigadores testam culturas amigas do tartaranhão-caçador

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Corte prematuro dos cereais leva à destruição dos ninhos desta ave ameaçada de extinção em Portugal. A Wilder falou com Joaquim Teodósio, coordenador do LIFE SOS Pygargus, e conta-lhe o que está a ser feito.

Em Mirandela, Trás-os-Montes, os terrenos da Quinta do Valongo acolhem 20 variedades de diferentes cereais, desde o trigo-mole ao trigo-barbela, centeio, aveia e triticale. Esta é a primeira campanha de ensaios que está a ser feita, num esforço dos investigadores do Pólo de Inovação de Mirandela para encontrarem as variedades mais amigas do tartaranhão-caçador, que poderão beneficiar ainda outras aves estepárias.

Mais a sul, os mesmos ensaios estão também a fazer-se no Alto Alentejo, no Pólo de Inovação de Elvas do Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária (INIAV).

Cultura de aveia, no Pólo de Inovação de Mirandela da CCDR-N. Foto: Palombar

Esta é uma das principais medidas do LIFE SOS Pygargus (2024-2030), um projeto cofinanciado pela União Europeia e coordenado pela ONG Palombar, que está a trabalhar para travar o decréscimo dos números de tartaranhões-caçadores na Península Ibérica. Segundo os dados do último censo (2022/2023), em Portugal esta ave de rapina sofreu um declínio de quase 80% em 20 anos, restando hoje apenas entre 119 e 207 casais.

As causa estão ligadas, principalmente, à transformação da paisagem agrícola portugesa, desde logo o quase total abandono da produção de cereais e a sua substituição pela criação de gado bovino, concluiu recentemente uma equipa de investigadores.

Adequar as culturas ao calendário dos ninhos

É entre março e abril que os tartaranhões-caçadores, também chamados de águias-caçadeiras, chegam a Portugal vindos de África, para nidificar e assegurar uma nova geração. Estas aves fazem os ninhos no chão, muitas vezes no meio das culturas cerealíferas, onde os ovos e as crias ficam mais escondidos. Mas hoje em dia, estão a ser vítimas de uma dupla armadilha ecológica.

Macho de tartaranhão-caçador a voar. Foto: Pedro Alves/Palombar

“Para construírem os ninhos, os tartaranhões procuram áreas de cereal com maior altura, o problema é que esses cereais são cortados ainda verdes, pois destinam-se a forragens para alimentar o gado”, explicou à Wilder o coordenador do LIFE SOS Pygargus, Joaquim Teodósio. Por esse motivo, porque os ovos ou as crias ainda estão nos ninhos quando é feita a colheita, as primeiras posturas acabam muitas vezes destruídas. É então que as aves procuram novas zonas para uma segunda postura, agora no meio das culturas de cereal para grão – o que pode acontecer até julho ou mesmo agosto – mas quando o fazem “já vão atrasadas”: o corte de cereais coincide novamente com outros ovos e crias no ninho, levando mais uma vez à sua destruição.

Com os testes que estão agora a ter início em Trás-os-Montes e no Alentejo, a equipa está em busca de cereais que sejam cortados mais tarde, adaptando-se melhor aos calendários do tartaranhão-caçador. Mas não só. “Estamos a testar diferentes variedades para ver também quais é que têm mais produtividade em cada uma das regiões e quais é que se adaptam melhor ao clima.” Até porque as alterações climáticas são outro fator que está a alterar as datas das colheitas.

Cultivo de variedades de cereais no Pólo de Inovação de Mirandela, em dezembro de 2024. Foto: Palombar

O objetivo é que os agricultores portugueses voltem a apostar mais no cereal destinado ao grão e ao fabrico de farinhas e de pães, entre outros produtos. Nestes casos a colheita faz-se mais tarde do que acontece quando o cultivo de cereais se destina a alimentar o gado bovino, “que precisa de grandes quantidades de alimento”, e no qual “as plantas são cortadas mais cedo, ainda verdes”.

Todavia, para que essa mudança de rumo aconteça, sublinha Joaquim Teodósio, “é necessário que estas variedades antigas e tradicionais ganhem mais valor e tenham mais procura no mercado”.

Um dos passos do cruzamento realizado no trigo-mole, com a intervenção dos investigadores no campo, que envolve a remoção dos estames, órgãos masculinos. Foto: Rita Costa/INIAV

As diferentes variedades de cereais que estão a ser testadas, todas de origem nacional, têm origem no Programa de Melhoramento Genético de Cereais do INIAV. “É importante salientar que neste tipo de cereais, pertencentes a espécies autogâmicas, não existe polinização cruzada, ou seja, uma das metodologias usadas para promover a variabilidade genética, essencial num programa de melhoramento genético, são os cruzamentos artificiais induzidos. Ao cruzarmos indivíduos dentro da mesma espécie promovemos a recombinação, a seleção dos melhores genótipos e o melhoramento genético, obtendo, desta forma, novas variedades com características superiores às existentes”, explica Rita Costa, investigadora deste instituto, citada numa nota de imprensa da Palombar. “Neste tipo de melhoramento não há edição ou modificação de genes, apenas recombinação e seleção dos genótipos que melhor cumprem os requisitos pretendidos”, acrescenta.

Novo grupo de produtores no Norte

Mas não é apenas o gado bovino que está a tirar espaço ao habitat do tartaranhão-caçador e de outras aves estepárias, como a abetarda e o sisão. Muitos terrenos estão a ser ocupados por amendoais e olivais intensivos, ou por grandes parques destinados a energias renováveis.

Com a intenção de aumentar a escala dos cereais para grão que são produzidos, em especial das variedades que forem mais amigas do tartaranhão-caçador, outra das medidas em cima da mesa é a criação de uma organização de produtores de cereais no Norte, onde é sentida essa lacuna. Esta organização deverá reunir vários elementos da cadeia deste produto alimentar, desde os agricultores aos responsáveis pela transformação dos cereais, e será promovida pela Associação Nacional de Produtores de Proteaginosas, Oleaginosas e Cereais (ANPOC).

Está também prevista a valorização de pães produzidos a partir de searas biodiversas e amigos de espécies ameaçadas, como o tartaranhão-caçador, através do Clube de Produtores Continente. Nos próximos anos, se tudo correr como previsto, chegarão às prateleiras de padarias e supermercados outros pães com novas variedades de cereais.

Entre outras medidas do LIFE SOS Pygargus, está também a ser preparada a criação de ovos e crias em cativeiro, nas instalações da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Além desta universidade transmontana, da Palombar, do INIAV, da ANPAC e do Clube de Produtores do Continente, o projeto conta com mais 12 parceiros ibéricos.

Inês Sequeira

Foi com a vontade de decifrar o que me rodeia e de “traduzir” o mundo que me formei como jornalista e que estou, desde 2022, a fazer um mestrado em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova. Comecei a trabalhar em 1998 na secção de Economia do jornal Público, onde estive 14 anos. Fui também colaboradora do Jornal de Negócios e da Lusa. Juntamente com a Helena Geraldes e a Joana Bourgard, ajudei em 2015 a fundar a Wilder, onde finalmente me sinto como “peixe na água”. Aqui escrevo sobre plantas, animais, espécies comuns e raras, descobertas científicas, projectos de conservação, políticas ambientais e pessoas apaixonadas por natureza. Aprendo e partilho algo novo todos os dias.

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