Muitos meses de trabalho de campo e de estudo permitiram a estes investigadores perceber as razões do rápido declínio da águia-caçadeira (Circus pygargus), algo crucial para decidir qual o melhor caminho para travar a extinção desta espécie Em Perigo no nosso país.
A águia-caçadeira, também conhecida como tartaranhão-caçador, é uma espécie diferente da maioria das águias, já que nidifica no solo. Na Europa, grande parte da população depende de culturas de cereal para fazer o ninho.
Em Portugal, o censo mais recente da espécie, realizado entre Abril e Julho de 2022-2023 por todo o país, veio trazer a prova daquilo que já se temia: um declínio de quase 80% em 20 anos. Se em 2012 existiriam entre 500 a 1000 casais, dez anos depois restavam apenas entre 119 e 207 casais.
Prospecções no campo feitas por vários peritos nos últimos anos permitiram perceber que o “número de crias voadoras por casal é muito baixo”, lembrou à Wilder João Gameiro, investigador do CIBIO, coordenador nacional do censo à espécie e primeiro autor deste estudo. Um casal de águia-caçadeira tem posturas de três a cinco ovos. A produtividade média em populações estáveis é de 2,0 crias por ninho, por ano. Em 2021 no Alentejo esse valor era de 0,6, uma situação “insustentável”, notou João Gameiro.
Os cinco distritos com mais casais desta espécie são Bragança (entre 45 e 50 casais), Beja (35 a 55), Portalegre (16 a 20), Guarda (5 a 19) e Vila Real (4 a 18).
Agora, um novo estudo publicado a 2 de Setembro na revista Conservation Science and Practice e liderado por investigadores do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (BIOPOLIS-CIBIO), da Universidade do Porto, e em colaboração com a Palombar e com o Concelho Superior de Investigações Científicas (CSIC) de Espanha, aponta as razões desta situação, relacionadas com as transformações a grande escala da paisagem agrícola portuguesa dos últimos 30 anos.
João Gameiro contou que, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), o país registou nas últimas décadas um quase total abandono de produção de cereal, agora em históricos mínimos, para a produção de gado bovino.
O aumento da carga ganadeira levou ao aumento da produção de culturas forrageiras, que agora representam mais de metade das terras aráveis do território continental. À falta de habitat adequado, as espécies são empurradas para estas culturas, e caem numa armadilha ecológica.
João Gameiro explicou que uma armadilha ecológica “acontece quando um animal é atraído para uma área, sem saber que tem menor qualidade ou que vai acabar por lhe reduzir a sobrevivência ou o sucesso reprodutor”.
A águia-caçadeira é uma espécie migradora. Passa o Inverno em África e chega a Portugal no início de Abril para se reproduzir e nidificar. Em meados de Agosto já está novamente de partida; os adultos seguem rumo a África e os juvenis ainda demoram algum tempo em dispersão pela Península Ibérica.
Quando estas águias chegam a Portugal na Primavera, as culturas forrageiras – como fenos de aveia – são em muito maior quantidade e estão muito mais desenvolvidas que as culturas de grão como o trigo, sendo mais atrativas para a espécie.
No entanto, são cortadas mais cedo, muitas vezes antes mesmo de os ovos eclodirem. Há águias que tentam fazer segundas posturas, desta vez nas parcelas para cereal, que são as que ainda persistem, mas como já entram tarde, voltam a estar desfasadas e a não conseguir ter sucesso antes do corte dos cereais. É uma dupla armadilha ecológica e acontece, por exemplo, na zona de Campo Branco, Castro Verde, onde foi feito um levantamento do habitat destas águias.
Beatriz Arroyo, investigadora do CSIC e que já trabalha com a espécie há vários anos, referiu, em comunicado, que “o problema da mecanização no corte de culturas anuais para aves que nidificam no solo já tinha sido identificado noutros países. Mas a predominância de fenos em Portugal leva a ameaça ao extremo.” João Gameiro acrescentou que “esta pode ser facilmente uma das principais causas pelo declínio acentuado observado nesta e noutras espécies importantes como a abetarda, o sisão ou a perdiz”.
O problema é muito sentido no Alentejo, que era a região agrícola do país mais importante. As populações serranas, mais a Norte, ainda estão pouco estudadas. Ainda assim, salientou João Gameiro, este é um “problema transversal a áreas agrícolas em todo o país”.
João Paulo Silva, investigador do CIBIO e coordenador do estudo, afirmou que se “a espécie não for alvo de medidas de emergência eficazes não vai conseguir subsistir em áreas agrícolas”, ainda que persista nas zonas serranas.
Mas, tal como lembrou José Pereira, diretor da Palombar e co-autor do estudo, “as populações em áreas serranas de mato no Centro e Norte de Portugal são muito fragmentadas e ainda menos estudadas”.
Soluções
A solução para manter a espécie na paisagem agrícola portuguesa passa por identificar e proteger os ninhos o mais rapidamente possível e colaborar com agricultores e proprietários para manter uma faixa não cortada em redor dos ninhos.
Outra medida é o resgate dos ovos em risco durante a época da ceifa e a reprodução em cativeiro.
“Os agricultores são parte da solução e é necessário rever as medidas agro-ambientais e torná-las economicamente atrativas”, referiu João Gameiro. Até agora, na sua opinião, a compensação monetária para adiar a ceifa em zonas tampão em redor dos ninhos tem sido muito baixa. O investigador adiantou que os conservacionistas vão tentar aumentar esse valor para o dobro ou para o triplo.
E todos saem a ganhar, até porque as águias-caçadeiras alimentam-se de pequenos roedores e de grandes artrópodes, como gafanhotos e escaravelhos, que podem danificar as culturas agrícolas. Além disso, as aves agrícolas – como a águia-caçadeira, a abetarda, o francelho e o rolieiro – ajudam a restaurar paisagens e a transformar regiões como Castro Verde em “paraísos ornitológicos”, procuradas por muitos que querem ver aves raras.
João Gameiro lembrou que vai começar este mês o projeto LIFE SOS Pygargus, cujo objectivo é, nos próximos seis anos, recuperar as populações nacionais e transfronteiriças com Espanha nos próximos anos.
O projecto é coordenado pela organização não governamental Palombar – Conservação da Natureza e do Património Rural e conta com 17 parceiros.
A equipa do projecto vai procurar saber mais sobre esta ave através, por exemplo, da marcação com dispositivos GPS de 100 adultos e 100 crias. Querem perceber, por exemplo, quais os territórios com habitat adequado para eventuais translocações e para reforço das medidas de protecção, mas também qual a eficácia das medidas de conservação e quais os maiores desafios durante as migrações.
“Enquanto país, temos a responsabilidade de conservar esta espécie. É única. Se não a protegermos vai haver cada vez menos aves”, disse João Gameiro. “É preciso tentar uma harmonia entre a produção agrícola e a conservação, chegarmos a compromissos que não impliquem grandes perdas para os dois lados.”