Estudo foi feito através do cruzamento entre dados de ciência cidadã obtidos por voluntários e análises ao ADN deste visitante frequente das praias portuguesas. A Wilder falou com a investigadora Antonina dos Santos, do projeto GelAvista, sobre a nova descoberta.
Durante muito tempo, os cientistas acreditaram que a caravela-portuguesa era um único gelatinoso que se movimentava livremente por todos os oceanos, mas uma investigação recente veio confirmar algumas suspeitas: este gelatinoso que é um visitante habitual da costa portuguesa, por vezes avistado em grandes números, diz afinal respeito a um grupo de quatro espécies diferentes. Todas têm características físicas e genéticas e uma distribuição que são únicas.
Esta investigação internacional, cujos resultados foram agora publicados na revista científica Current Biology, foi conduzida por investigadores da Universidade de Yale, nos EUA, e das universidades de New South Wales e de Griffith, na Austrália.
A equipa sequenciou os genomas de 151 caravelas-portuguesas, o género Physalia, encontradas em diferentes locais do planeta. O que encontraram contradiz o que era aceite até agora, de que existiria uma única população genética destes gelatinosos espalhada pelo oceano, que ainda para mais têm qualidades que favorecem viagens de longa distância, com os seus corpos cheios de gás que os ajudam a flutuar e o formato que se assemelha a uma vela, bom para aproveitarem a boleia dos ventos. No estudo em laboratório, foram detetadas evidências importantes de cinco linhagens genéticas distintas, geograficamente separadas, que indicam que cada um destes grupos se tem reproduzido de forma isolada.
“Ficámos chocados, porque assumíamos que eram todas da mesma espécie”, afirmou Kylie Pitt, professora e investigadora ligada à Universidade de Griffith, citada numa nota de imprensa desta universidade australiana. “No entanto, os dados genéticos mostram claramente que não são apenas diferentes; nem sequer se reproduzem entre si, apesar de haver alguma sobreposição das áreas onde se distribuem.”
A equipa recorreu aos dados disponíveis na plataforma de ciência cidadã iNaturalist, através de milhares de fotografias aí partilhadas por cientistas-cidadãos. Cruzando a informação disponível, conseguiram encontrar uma correspondência entre os grupos de caravelas-portuguesas com morfologias (características físicas) distintas com quatro linhagens genómicas que tinham sido identificadas em laboratório. Na verdade, essas quatro morfologias diferentes já tinham sido referidas por naturalistas nos séculos XVIII e XIX, e propostas como quatro espécies diferentes, mas mais tarde foram ignoradas pelo ciência.
Agora, os novos dados vieram confirmar as suspeitas mais antigas e resultaram na descrição para a ciência de quatro espécies de caravela-portuguesa: Physalia physalis, Physalia utriculus, Physalia megalista e Physalia minuta. Cada uma dessas espécies, por sua vez, subdivide-se em subpopulações geneticamente distintas, influenciadas pelos ventos e correntes oceânicas de cada região do globo.
Qual é a caravela-portuguesa de Portugal?
Até hoje é conhecida apenas a espécie Physalia physalis na área do Atlântico Norte, que engloba as costas de Portugal continental e dos Açores e Madeira, explicou à Wilder Antonina dos Santos, ligada ao Instituto Português do Mar e da Atmosfera. No caso desta caravela-portuguesa, por exemplo, o tamanho da crista do pneumatóforo (órgão que serve de flutuador) é maior do que nas três espécies restantes, apresentando uma cor rosa e arroxeada e uma forma característica de disposição dos tentáculos, descreveu a investigadora, que coordena também o projeto de ciência cidadã GelAvista, dedicado ao conhecimento e divulgação dos organismos gelatinosos na costa portuguesa.
Em 2025, referiu, a Physalia physalis tem sido o segundo gelatinoso mais observado na costa portuguesa no âmbito do GelAvista, tal como já tinha acontecido em 2024, mas em números menores do que em 2023. “O que aconteceu nesta primavera foi a sua ocorrência abundante em todo o arquipélago da Madeira e na costa sul do Algarve, fenómeno raro neste último caso. A última vez que tínhamos tido a mesma quantidade de observações na costa sul tinha sido em 2018”, disse também.
Quanto ao estudo agora publicado, Antonina dos Santos realçou que este “é muito importante a vários níveis”. Desde logo pelo avanço no conhecimento científico, confirmando uma possibilidade já avançada em estudos anteriores. Em segundo lugar, por demonstrar “a importância do uso de dados de ciência cidadã”, através da utilização das fotografias partilhadas por cidadãos na plataforma iNaturalist. “A conjugação de trabalho científico com informação proveniente da recolha por parte de cidadãos é cada vez mais utilizada, com resultados benéficos para o avanço do conhecimento científico das espécies marinhas”, lembrou, sublinhando que a importância desse trabalho já foi referida pela equipa do GelAvista e traduziu-se em novos resultados científicos no âmbito do projeto.
Por último, fez notar, os resultados agora publicados só foram possíveis graças ao “trabalho científico colaborativo de um grande número de cientistas de diversos locais”, incluindo de investigadores da Universidade dos Açores.
Novas questões sem resposta
Apesar deste avanço no conhecimento científico sobre as caravelas-portuguesas, todavia, nascem agora algumas perguntas que vão precisar de resposta, avançou por sua vez Kylie Pitt, da Universidade de Griffith. “Porque é que se desenvolveram até resultarem em espécies separadas, quando pensamos que estariam todas no mesmo ambiente, misturando-se entre si? Qual foi a pressão seletiva que levou à diferenciação das espécies?”, exemplificou.
A equipa considera que serão necessárias novas investigações sobre os processos físicos, ambientais e biológicos que deram origem a esta diversidade genética, até porque os resultados ajudarão os cientistas a reavaliarem a forma como encaram a biodiversidade no oceano aberto.