Cientistas portugueses fizeram estudo para perceber de que forma as cegonhas-brancas nascidas em Portugal se tornam ou não migradoras, numa altura em que a grande maioria opta por ficar.
É quando as cegonhas-brancas (Ciconia ciconia) são ainda juvenis, antes de começarem a reproduzir-se com três ou quatro anos de idade, que a sua estratégia migratória fica determinada para o futuro. A partir da passagem à vida adulta, esse comportamento repete-se nos 20 a 30 anos de vida que têm pela frente, conclui um estudo publicado na revista científica Journal of Animal Ecology, numa altura em que o comportamento migratório da espécie está a mudar de forma acelerada em Portugal.
Hoje, a grande maioria das cegonhas-brancas deixou de migrar. Ao mesmo tempo que fazem estudos para perceber o que está a motivar essas alterações, os cientistas estão a tentar perceber de que forma isso acontece. De acordo com o novo estudo, a explicação está num mecanismo conhecido como “plasticidade no desenvolvimento”, ou seja, as cegonhas juvenis são plásticas (flexíveis) nos comportamentos que adotam – neste caso o facto de serem ou não migradoras – tendo a capacidade de os alterar enquanto se estão a desenvolver.
“Os juvenis, como chamamos às cegonhas entre um e três a quatro anos de idade, antes de se começarem a reproduzir, são pouco consistentes. A grande maioria migra no primeiro ano, mas podem depois mudar de estratégia e tornarem-se residentes ao segundo, terceiro ou quarto anos de idade”, explica Inês Catry, co-autora e coordenadora deste novo estudo.
No entanto, quando começam a reproduzir-se chegando à idade adulta, estas aves deixam de ser flexíveis. “Tornam-se altamente repetitivas no seu comportamento migrador e já não mudam de estratégia. Um indivíduo que atinge a idade adulta e é migrador, será sempre migrador, enquanto que um não migrador ficará não migrador”, acrescenta a investigadora, que está ligada ao CE3C – Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais, na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL).
Esta é uma descoberta importante “porque mostra os mecanismos através dos quais espécies de grande longevidade, como a cegonha branca, conseguem mudar drasticamente os seus comportamentos em poucas gerações – mesmo comportamentos evolutivamente tão complexos como a migração de longa distância”, esclarece outra das co-autoras do artigo agora publicado, Marta Acácio, ligada ao centro de investigação CIBIO InBIO, no Instituto Superior de Agronomia.
Fica também demonstrado que a plasticidade no desenvolvimento é um dos mecanismos possíveis de resposta a alterações no ambiente de uma espécie. “No caso das cegonhas, são as aves jovens os agentes desta mudança [na estratégia migratória]. Estes juvenis não migradores vão substituindo os adultos migradores, e por isso vemos a população a passar a residente”, acrescenta a cientista.
Quatro em cada cinco já não migram
Foi em 2016 que esta mesma equipa de cientistas, no âmbito do projeto Birds on the Move – que deu também origem a este estudo mais recente – publicou um artigo científico sobre as alterações encontradas no comportamento migratório das cegonhas-brancas, chamando a atenção para o número crescente de aves residentes.
Hoje, essa estratégia é adotada por cerca de 80% das cegonhas adultas que nasceram em território português, ou seja, quatro em cada cinco não migram, permanecendo em Portugal. Esses dados foram obtidos através do seguimento de cegonhas marcadas com emissores GPS e dos censos dirigidos a esta espécie.
Foi também graças à informação recolhida nos censos (entre 1995 e 2020) e no seguimento por GPS, neste caso de 213 cegonhas-brancas juvenis e adultas marcadas no sul de Portugal (entre 2016 e 2022), que a equipa do Birds on the Move conseguiu realizar o estudo agora publicado. A análise dos dados mostrou que no primeiro ano de vida, a esmagadora maioria das cegonhas juvenis seguidas (98%) atravessa o Estreito de Gibraltar e inverna em África. A percentagem de cegonhas migradoras decresceu no segundo ano de vida (para 67%) e ainda mais no terceiro (33%), levando a equipa a concluir que “a estratégia migratória definitiva é provavelmente adquirida na transição para a vida adulta”, explica o artigo publicado.
O que está a acontecer não é caso único, aliás. “É sabido que muitas espécies estão a adaptar o seu comportamento migratório às alterações ambientais, por exemplo, alterando as datas de migração, escolhendo novas rotas, diminuindo a distância de migração, ou até mesmo deixando de migrar, como é o caso das cegonhas”, nota Marta Acácio.
Testadas três hipóteses
Durante este estudo, para perceberem de que forma as cegonhas-brancas deixam ou não de migrar, os investigadores decidiram testar três hipóteses.
Além da plasticidade no desenvolvimento, demonstrada como a mais provável, outra possibilidade era este comportamento migratório ser determinado geneticamente. Estudos científicos já mostraram que isso sucede com as pequenas toutinegras-de-barrete (Sylvia atricapilla), mas o mesmo não se verificou para as cegonhas-brancas. “No caso das cegonhas, as nossas análises genéticas sugerem que indivíduos migradores e residentes são geneticamente semelhantes, tornando pouco provável que a passagem da população a residente seja determinada por microevolução”, esclarece Marta Acácio.
No que respeita à terceira hipótese testada pela equipa, flexibilidade fenotípica, esta acontece por exemplo com os fuselos (Limosa lapponica). “Um estudo publicado recentemente mostra que a migração desta espécie, entre a Nova Zelândia e o Alasca, ‘avançou’ 6 dias entre 2008 e 2020, e que isso se deve aos indivíduos adultos serem plásticos, isto é, conseguirem alterar as suas datas de partida e avançarem essas datas de partida em resposta a alterações ambientais”, descreve a ivestigadora. “As nossas cegonhas adultas parecem ser consistentes e não conseguem alterar a decisão de migrar ou não migrar.”
O que falta saber
A investigação sobre a migração das cegonhas-brancas tem neste momento financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia para continuar o trabalho durante os próximos três anos. Uma das atuais metas é esclarecer o que leva uma destas aves a migrar ou a ser residente, diz Inês Catry. Para já, os estudos ainda em curso mostram que as experiências vividas num determinado ano influenciam o comportamento dali a 12 meses. “Por exemplo, uma cegonha que tenha mais dificuldades numa migração, por exemplo gastando mais energia ou demorando mais tempo no seu percurso, pode ter uma maior propensão para não migrar no ano seguinte.”
A influência da comida disponível nos aterros sanitários – e das mudanças previstas para breve com as restrições ao uso destes espaços, devido à legislação europeia – são outras perguntas a que estes investigadores tentam responder.
Outra questão em busca de resposta são as condições que as cegonhas migradoras enfrentam na área de invernada original, situada a sul do deserto do Sahara e conhecida como Sahel. “Esta área é importantíssima para a cegonha-branca e muitas outras aves migradoras, mas está sob uma enorme pressão por causa das alterações climáticas e das mudanças agrícolas e de uso do solo”, acrescenta a investigadora da FCUL. “Assim sendo, é muito importante perceber como é que estas alterações provocadas pelo Homem influenciam a cegonha-branca e outras aves migradoras.”