A Wilder entrevistou Pedro Raposo de Almeida, professor catedrático na Universidade de Évora e especialista em peixes migradores, sobre o projecto da futura Ponte-Açude no Rio Novo do Príncipe no rio Vouga, em Cacia, concelho de Aveiro.
O aviso foi lançado publicamente pela associação ambientalista ZERO no final de Setembro, alertando para o facto de este projecto não prever a construção de raiz de uma passagem para peixes, o que “coloca em risco a conservação de peixes migradores”.
O objectivo da nova obra é “travar o avanço da cunha salina e assegurar a disponibilidade de água doce para fins industriais – principalmente para fornecimento de água doce à unidade fabril de produção de pasta de papel da Navigator – e agrícolas”, segundo a associação. No entanto, por se desenvolver numa Zona Especial de Conservação, destinada a garantir a conservação de algumas espécies de peixes migradores, a ZERO advoga “uma nova avaliação de impacte ambiental (18 anos após a anterior), a par da instalação imediata de um dispositivo de passagem para peixes”.
Em causa está o futuro de peixes anádromos como o salmão e a lampreia-marinha, por exemplo, que nascem em água doce e se deslocam para o mar, onde crescem até atingir a maturidade. É então que regressam à água doce para desovar.
Para Pedro Raposo de Almeida, investigador do MARE-Centro de Ciências do Mar e do Ambiente na Universidade de Évora, esta obra “terá consequências muito negativas”. “Estes peixes [anádromos] só se reproduzem em água doce, e impedi-los de alcançar esses habitats é condená-los a uma morte sem propósito”, salienta.
E mesmo construir uma passagem para peixes “não é panaceia para todos os males.” “Temos de perceber que não existem passagem para peixes 100% eficientes, o que significa que apenas uma parte da população adulta capaz de se reproduzir vai conseguir transpor o obstáculo e alcançar as áreas de reprodução”, avisa, notando que criar condições de habitat e monitorizar esses equipamentos – o que quase não acontece em Portugal – é essencial.
WILDER: Qual é a situação, em Portugal, dos peixes anádromos que podemos encontrar no Vouga?
Pedro Raposo de Almeida: Na última edição do Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal [publicada em 2005], a generalidade das espécies migradoras diádromas [migradoras entre água doce e água salgada e vice-versa] apresentava um estatuto de ameaça muito preocupante: no caso do sável e da enguia foram classificadas como Em Perigo; o salmão, a truta-marisca e a lampreia-de-rio como Criticamente Em Perigo; a lampreia-marinha apresentava a classificação de Vulnerável.
Apesar dos bons resultados que temos obtido no caso do Mondego, onde o trabalho desenvolvido pela equipa que coordeno da Universidade de Évora / MARE – em parceria com diferentes entidades e com os pescadores profissionais – tem vindo a recuperar as populações de sável e lampreia-marinha nessa bacia hidrográfica, infelizmente é pouco provável que a revisão do Livro Vermelho dos Peixes Dulciaquícolas e Migradores, que está a ser executada neste momento – nos traga boas notícias. É previsível que aqueles estatutos de ameaça se mantenham inalterados.
W: Mas qual é a importância do rio Vouga para os peixes migradores?
Pedro Raposo de Almeida: O Vouga é um dos rios portugueses onde ainda ocorrem importantes populações de várias espécies de peixes migradores anádromos, designadamente o sável, a lampreia-marinha e a truta-marisca. Estas espécies, que têm obrigatoriamente de se reproduzir em água doce, são especialmente vulneráveis à fragmentação de habitat provocada por açudes e barragens que interrompem o seu percurso migratório.
O conceito de continuidade longitudinal dentro da mesma bacia hidrográfica é consensual e facilmente percetível pela generalidade das pessoas. Contudo, há também a questão da continuidade latitudinal, ou seja, a presença de populações viáveis em bacias hidrográficas contíguas. Tendo em conta que o Douro há muito que perdeu as suas populações de sável e lampreia-marinha, é fundamental que o Vouga mantenha as populações destas espécies – particularmente para o caso do sável.
O esforço que tem sido feito em Portugal para a reabilitação das populações de peixes migradores ao longo da última década pode ser posto em causa se deixarmos de olhar para este problema de forma holística e integrada, envolvendo todos os aqueles que direta- e indiretamente – interagem com estas espécies.
W: A inexistência de uma passagem para peixes no projecto da nova ponte-açude no estuário do Vouga está a ser contestada. Em termos gerais, como é que funcionam estas passagens?
Pedro Raposo de Almeida: Os dispositivos de transposição piscícola, vulgarmente conhecidos como escadas para peixes, são infraestruturas acopladas às barragens, açudes e outras barreiras intransponíveis para os peixes. Existem diferentes tipos, desde passagens técnicas como a que existe no Açude-Ponte de Coimbra – utilizada anualmente por mais de um milhão de peixes – passando pelas rampas de peixes semi-naturalizadas também existentes nos açudes do Mondego, e até elevadores e eclusas para peixes.
Projetar uma passagem destas que seja eficiente não é uma tarefa simples, porque o primeiro desafio é conseguir atrair os peixes para a sua entrada. E depois garantir que as condições hidráulicas no seu interior são adequadas às espécies-alvo, permitindo a passagem dos peixes através destas infraestruturas.
W: Mas essa poderá ser uma solução para os peixes que ficarem impedidos de passar a futura ponte-açude?
Pedro Raposo de Almeida: A instalação de uma passagem para peixes não é a panaceia para todos os males. Temos de perceber que não existem passagens para peixes 100% eficientes, o que significa que apenas uma parte da população adulta capaz de se reproduzir vai conseguir transpor o obstáculo e alcançar as áreas de reprodução. E eficiências inferiores a 50% são comuns, traduzindo-se numa redução substancial do potencial reprodutor da espécie.
Mas o desafio para estes peixes não termina no momento em que ultrapassam a barragem, pois ainda têm de encontrar a montante habitats adequados à sua reprodução, nem sempre existentes. Finalmente, temos que garantir que os juvenis conseguem realizar a migração trófica em direção ao mar em segurança, algo que não é possível acontecer na generalidade das barragens para produção hidroelétrica.
É por todas estas razões que as passagens para peixes devem ser monitorizadas: para termos a certeza de que estão a cumprir a função para a qual foram construídas e que as populações de peixes migradores evidenciam sinais de recuperação.
W: Estes peixes que sobem o rio contra a corrente regressam normalmente aos locais onde tinham nascido?
Pedro Raposo de Almeida: De todas as espécies migradoras diádromas que ocorrem em Portugal, apenas o salmão exibe um comportamento designado por ‘homing’. Ou seja, depois da fase de crescimento no mar regressa à bacia hidrográfica onde eclodiu anos antes. Chegam a selecionar o afluente onde os seus progenitores depositaram os ovos que lhes deram origem.
Contudo, há outras espécies que não exibindo um comportamento de ‘homing’ têm um certo grau de fidelidade geográfica, ou seja, regressam à mesma bacia hidrográfica, ou optam por um rio que lhe seja adjacente. Daí a importância de manter as populações do Vouga que estão, em parte, associadas às do Mondego.
W: E o que acontece aos peixes que ficarem impossibilitados de chegar aos locais de desova?
Pedro Raposo de Almeida: Pode acontecer uma de duas coisas. Em primeiro lugar, se a jusante das barragens existirem habitats dulciaquícolas que proporcionem locais de desova, poderão reproduzir-se e manter uma pequena fração da população viável.
É o que acontecia no Mondego antes da construção da passagem de peixes do Açude-Ponte de Coimbra. Antes de 2011, os sáveis e as lampreias-marinhas tinham que se reproduzir nos 15 quilómetros de rio que existem entre Coimbra e o açude da Formoselha, a jusante.
Em alternativa, se a jusante das barragens não existirem habitats dulciaquícolas – como é o caso do Douro em que a barragem de Crestuma-Lever está localizada em pleno estuário – as espécies de peixes migradores anádromas são eliminadas dessa bacia hidrográfica. Estamos a falar de peixes como a lampreia-marinha, o sável, a truta-marisca, por exemplo.
É por essa razão que a construção da Ponte-Açude no Rio Novo do Príncipe, em pleno estuário do Vouga, terá consequências muito negativas sobre as populações de peixes migradores. Estes peixes só se reproduzem em água doce, e impedi-los de alcançar esses habitats é condená-los a uma morte sem propósito.
W: O Vouga já tem outras passagens para peixes? E noutros rios em Portugal?
Pedro Raposo de Almeida: Na parte inferior da bacia hidrográfica do Vouga não existem passagens para peixes. No Vouga a migração é interrompida pela mini-hídrica da Grela, e num dos principais afluentes, o rio Águeda, existem inúmeros obstáculos que impedem a progressão destes peixes até aos locais de reprodução.
É aliás neste contexto que surgiu o projeto LIFE ÁGUEDA, que entre outras ações prevê a construção de cinco passagens para peixes e a remoção de diversos obstáculos nos rios Águeda e Alfusqueiro. As obras terão início antes do final do ano.
Por outro lado, há passagens de peixes construídas em muitas barragens e mini-hídricas existentes em Portugal, mas a generalidade não funciona adequadamente. Aliás, a maioria nunca foi monitorizada, por isso o desconhecimento sobre a sua eficiência é quase absoluto. Indiretamente, podemos concluir que não estão a cumprir a sua função, porque o que se regista é uma depleção generalizada das populações de peixes – em particular das que necessitam de fazer migrações.
O ex-libris das passagens para peixes em Portugal é a que está instalada no Açude-Ponte de Coimbra. Foi construída pela Agência Portuguesa do Ambiente e desde 2013 é monitorizada pela Universidade de Évora / MARE. Por ano, é utilizada por mais de um milhão de peixes.
W: A operação de comportas programada de acordo com o período migratório, pode servir como alternativa a uma passagem para peixes?
Pedro Raposo de Almeida: A operação das comportas visa impedir a progressão da cunha salina para montante, o que significa que uma boa parte do ano vão estar fechadas durante a maré enchente – um período utilizado pelos peixes migradores para progredirem para montante. A abertura das comportas durante a maré vazante também não dá garantia de passagem, porque a abertura será apenas parcial, junto ao fundo, e com potencial para gerar forças hidráulicas que a natação dos peixes não consegue superar.
Além do mais, a dinâmica dos sistemas estuarinos é extremamente complexa, e construir uma barreira que impeça a livre circulação da massa de água significa que substituímos o gradiente salino que se observa naturalmente por um cenário onde a jusante da Ponte-Açude passará a existir água com uma salinidade próxima de 30 ‰ em preia-mar (a água do mar tem uma salinidade próxima de 36 ‰), e imediatamente a montante teremos água doce (0 PSU). [A unidade da salinidade é g/kg, ou seja, partes por mil, e representa-se como ‰.] Esta passagem abrupta entre meios de salinidades tão distintas provoca graves perturbações fisiológicas em muitas espécies de peixes e invertebrados, contribuindo para desequilíbrios ecológicos no ecossistema estuarino.
Saiba mais.
Assista a um vídeo sobre o projecto de reabilitação do Mondego para os peixes diádromos, aqui.