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Madeira: Botânico lamenta “desprezo total” e “ignorância” sobre o que se está a perder com o fogo

23.08.2024

A floresta Laurissilva, património mundial da Unesco, é talvez o tesouro natural mais conhecido da ilha da Madeira, mas há tantos outros que uma única conversa não chega para referir. Miguel Sequeira, botânico e investigador da Universidade da Madeira, fez à Wilder o ponto de situação sobre o que estamos a perder com o incêndio.

O fogo que começou a 14 de Agosto no concelho da Ribeira Brava, na costa sul da ilha da Madeira, e que dez dias depois continuava ativo na Cordilheira Central (Pico Ruivo) e na Ponta do Sol (Lombada), está a deixar um rasto de destruição difícil de seguir. Estima-se que já tenham ardido mais de 5.500 hectares.

Enquanto no terreno prosseguia o combate às chamas, então confinadas às zonas altas da ilha, Miguel Sequeira falava ao telefone com a Wilder para contar qual o impacto do incêndio naquilo que conhece melhor, as comunidades vegetais únicas daquela ilha.

Floresta Laurissilva. Foto: Luís Miguel Rodrigues/WikiCommons

Comecemos pela floresta Laurissilva, património da humanidade da Unesco desde 1999. Este ecossistema alberga muitos endemismos arbustivos e herbáceos (espécies que só se podem encontrar aqui) e conta com uma grande diversidade de líquenes e briófitos (musgos, por exemplo). Além disso, dele dependem inúmeras outras espécies, como o ameaçado fura-bardos (Accipiter nisus granti), que faz ninho nas árvores mais altas desta floresta.

“Há floresta Laurissilva já afetada pelo fogo”, como na Ribeira Brava e em São Vicente, disse Miguel Sequeira. “Temos Laurissilva a Norte e a Sul, este ecossistema está em vários sítios, não está concentrado apenas num. A floresta do Sul está reduzida a uns nichos, é pouca; mas por isso é muito importante, é de um tipo especial, não é igual à Laurissilva do Norte.”

Esta manhã, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas garantiu, citado pela RTP, que a área de floresta Laurissilva destruída no incêndio na Madeira é residual. Para Miguel Sequeira, “falarmos de ‘perda residual’ em algo que é património da Humanidade é inaceitável”.

Mas o fogo está a destruir outras riquezas botânicas, menos conhecidas. Para essas, disse este investigador da Universidade da Madeira, “o desprezo é total”. “Há outro tipo de vegetação a arder e para a qual há um desprezo total. Uma é a vegetação das ravinas, habitat classificado pela Diretiva europeia Habitats, com endemismos escassíssimos”, que já só sobrevivem em paredes verticais no Sul da ilha, sublinhou.

“Ouvimos falar de que estão a arder apenas matos na ravina, sem importância. Mas na verdade, esse é um habitat refúgio para muitas espécies, várias delas raras e ainda desconhecidas.” O botânico referiu, por exemplo, que já desapareceu uma nova população de uma espécie que estava prestes a ser descrita num artigo científico. “Ainda não publicámos e já desapareceu!” E fez uma comparação. “Conseguimos salvar a sala mas está a arder a dispensa. E é na dispensa que está o nosso sustento”.

Floresta Laurissilva. Foto: Luís Miguel Rodrigues/WikiCommons

Mas as más notícias não acabam aqui. O fogo também está a afetar a vegetação das cordilheiras e dos picos, mais acima. Ali ocorrem uma grande quantidade de espécies endémicas – ou seja, exclusivas do arquipélago – como o teixo-europeu, o cedro-da-madeira (Juniperus cedrus) e a sorveira-da-madeira (Sorbus maderensis), classificada como Criticamente Em Perigo de extinção e que já é tão escassa.

“De certeza que o fogo já chegou a estes endemismos. É uma loucura a perda de populações de espécies, uma catástrofe”, referiu desolado, sem esquecer também as espécies endémicas de gramíneas e ainda toda a vegetação dos picos da ilha, as quais nos últimos 20 anos houve “um enorme esforço para descrever.”

Fogo, uma ameaça recorrente

A equipa de Miguel Sequeira tem vindo a dedicar-se à taxonomia, trabalhando com um vasto conjunto de dados de diversidade genética e morfológica, descrevendo um “número aceitável” de espécies novas, descobrindo relações filogenéticas entre plantas e novas populações de espécies raras.

Mas ainda há “imenso por conhecer”. E “corremos o risco de estar a queimar espécies que ainda não foram descritas, populações geneticamente distintas”, avisou.

Musgos e hepáticas da floresta Laurissilva da Madeira. Foto: Virgílio Gomes/WikiCommons

Além dos efeitos imediatos, o fogo traz outros mais definitivos, se for recorrente. Aqui o problema é a “reiteração do fogo, com incêndios consecutivos que vão impedindo a recuperação da vegetação”, lamentou o botânico madeirense. “Com este processo de fogos consecutivos, vamos limitando a possibilidade de regeneração das comunidades de vegetação nativas e a recuperação da floresta madura.”

O problema das invasoras

Ao mesmo tempo, os incêndios facilitam a chegada de espécies invasoras na Madeira, como o tojo em altitude e as acácias, que “são terríveis”.

Na opinião de Miguel Sequeira, os nossos esforços para cuidar da floresta da ilha da Madeira devem ser concentrados aqui mesmo, na luta contra as invasoras. “É preciso avaliar os sítios onde vale a pena intervir e só atuar quando estritamente necessário, e só na contenção de invasoras. Não é replantar, até porque não temos os milhões de árvores que seriam necessários. O que é duro é conter as invasoras, há mais a aparecer todos os dias, não há controlo nas fronteiras quanto a potenciais invasores.”

E é muito importante fazê-lo, sublinhou. “As montanhas são ecossistemas vitais. A ilha não tem rios, a água que capta é a da chuva e a de precipitação oculta” – fenómeno que se reveste de uma “importância enorme” e que capta até três vezes mais água do que a da chuva directa. Graças aos ventos a Norte, as nuvens passam pela vegetação e aí acontece o colapso de gotículas, explicou o botânico. “Quando isto desaparecer, esta água desaparece das levadas, das canalizações, da agricultura, da vegetação; não há recarga de aquíferos.”

E nessa situação, só haverá uns poucos a ganhar: as espécies exóticas invasoras. “É um acumular de fósforos na paisagem quando mantemos o isqueiro nas mãos dos pirómanos. É pura ignorância.”

“Seremos nós capazes de cuidar da nossa natureza?”, lançou ainda Miguel Sequeira. Fica a pergunta.


Saiba de que forma está o fogo a afectar a freira-da-madeira.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.

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