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abutre-preto em voo
Abutre-preto. Foto: Artemy Voikhansky/Wiki Commons

Lista Vermelha: “o abutre-preto demonstra bem que o trabalho de conservação resulta em recuperação de espécies fantásticas”

13.12.2023

Uma em cada três populações de aves portuguesas está ameaçada de extinção, alerta a Lista Vermelha das Aves de Portugal Continental, apresentada ontem. Domingos Leitão, director-executivo da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA), falou à Wilder sobre os resultados.

WILDER: Hoje são 14 as espécies de aves Criticamente Em Perigo de extinção em Portugal. Houve surpresas?

Domingos Leitão: Não se pode dizer que houve surpresas, pelo menos para os ornitólogos que acompanham o percurso das espécies. Mas houve uma espécie que “entrou” para esta categoria e que não devia ter entrado. Trata-se do sisão, uma espécie dependente dos pousios e dos sistemas de sequeiro do Alentejo, e que é só uma das espécies mais estudadas e mais conhecidas da nossa fauna. As aves de zonas agrícolas em geral, e as aves estepárias em particular, têm sofrido com a intensificação da agricultura e com a alteração drástica dos usos do solo. As monoculturas agrícolas, a simplificação da paisagem, o aumento do regadio e do uso de agroquímicos está a arrastar para a extinção um grupo de aves único em toda a Europa, que são as aves das planícies de sequeiro do sul e centro de Portugal. A redução drástica das populações de sisão, abetarda, águia-caçadeira e rolieiro aconteceram por toda a sua área de distribuição, incluindo dentro das áreas protegidas. É urgente reverter a intensificação agrícola e criar áreas de habitat agrícola com qualidade, se queremos salvar estas espécies da extinção. O estado grave em que encontra o sisão e outras espécies estepárias não se deve à falta de conhecimento, nem à falta de dinheiro para a proteção das espécies e gestão do seu habitat agrícola. Deve-se apenas à falta de vontade política e ao bloqueio das políticas agrícolas sustentáveis imposto por determinados setores do Ministério da Agricultura e dos interesses instalados da agricultura
intensiva.

Mas também há exemplos ao contrário. Houve três espécies cujo estatuto passou de Criticamente em Perigo para Em Perigo. Uma delas, o abutre-preto, demonstra bem que o trabalho de conservação resulta em recuperação de espécies fantásticas e que ainda por cima valorizam o território e executam
serviços de ecossistemas fundamentais e sem custos.

W: Na opinião da SPEA, qual o futuro destas aves para a próxima década?

Domingos Leitão: Para algumas espécies, como a águia-imperial e águia-pesqueira, o futuro deverá ser mais promissor, uma vez que as suas populações estão a recuperar em virtude de projetos e ações de conservação em Portugal e Espanha. Outras – como o sisão, o rolieiro e outras dependentes de sistemas agrícolas – o seu futuro vai depender muito da vontade dos decisores para mudarem a política agrícola, para que haja apoios aos agricultores que querem implementar práticas amigas do ambiente e da natureza. Mas para muitas não sabemos, é necessária mais investigação e conhecimento das causas dos decréscimos e, acima de tudo, muita vontade política para proteger as espécies e restaurar os ecossistemas, porque dinheiro não vai faltar.

W: Nesta revisão foram abrangidas 285 espécies. Qual foi o critério para esta selecção?

Domingos Leitão: Foram consideradas as espécies com populações nidificantes em Portugal Continental, atualmente ou historicamente, as espécies com populações migradoras invernantes e, num único caso, as espécies com populações migradoras de passagem.

W: Do lado das boas notícias, o que a SPEA destaca?

Domingos Leitão: Destacamos as espécies ou grupos de espécies que viram diminuído o seu risco de extinção em Portugal Continental. Temos exemplos de espécies de aves aquáticas cuja a situação melhorou porque terão melhorado as condições ambientais de forma geral nas zonas húmidas das quais dependem. Espécies como os patos terão beneficiado da redução da pressão da caça, pela diminuição do número de caçadores e pela gestão mais equilibrada desta atividade. Espécies de garças, colhereiros e ibis terão beneficiado de maior abundância de alimento nos arrozais e outras zonas alagadas, e também de uma maior proteção das seus locais de reprodução. Temos exemplos de espécies que beneficiaram de grandes e prolongados projetos e ação de conservação. As aves de rapina, como os abutres e as grandes águias, beneficiaram de ações de conservação que reduziram ameaças sérias, como a perseguição direta, o uso ilegal de venenos, a mortalidade em linhas elétricas, entre outras. Estes resultados são muito importantes, porque demonstram que as ações de conservação funcionam e que as espécies respondem bem ao restauro do habitat e à redução das ameaças de origem humana.

W: O que podem as pessoas em geral fazer para ajudar a conservar as aves de Portugal?

Domingos Leitão: As pessoas podem fazer muitas coisas que, à primeira vista, parecem inconsequentes mas que no médio e longo prazo terão o seu efeito positivo. Temos de ser cidadãos mais críticos e mais ativos no nosso dia a dia. Na prateleira do supermercado temos de ser muito mais exigentes, pois muitos dos problemas das aves e da natureza refletem-se na prateleira do supermercado. Relativamente à carne e ao peixe, temos de consumir menos quantidade e mais qualidade. Temos de cortar com o consumo de proteína animal resultante da pecuária intensiva e da pesca destrutiva. A carne das
suiniculturas, aviculturas e dos bovinos estabulados tem um enorme passivo ambiental nas explorações em si e nos circuito das rações para animais. Devemos cortar com estas carnes e consumir apenas carnes de explorações extensivas, com base em pastagens e não em rações. No que diz despeito ao
peixe, temos de cortar os peixes de aquacultura e da pesca de arrasto de fundo. Devemos preferir peixes pescados em anzol, de preferência com certificação MSC e medidas mitigadoras das capturas acidentais de aves e mamíferos marinhos. Também nas frutas e hortícolas podemos fazer a diferença para a natureza. Temos de comprar local e no tempo certo. As frutas e os legumes que nos aparecem fora de tempo têm um enorme passivo ambiental. Por exemplo, só temos tomates, pimentos e mirtilos todo o ano porque vastas áreas de Portugal e Espanha estão já cobertas por estufas e outros métodos de produção destruidores da paisagem e dos ecossistemas. Temos de desconfiar do azeite barato dos mega-produtores olivícolas do Alentejo e dos benefícios dos abacates do Algarve. Só devemos consumir produtos locais e de produção extensiva. Temos de desconfiar dos produtos que nos aparecem miraculosamente “bons e baratos” porque vamos pagar essa fatura mais tarde, sob a forma de crises ambientais. No supermercado, o lema é menos quantidade, mais qualidade, produção local e no tempo. Se aplicarmos estas orientações, acabamos a proteger as aves.

Para além do supermercado, temos muito por onde ser cidadãos ativos e responsáveis. Temos que ser responsáveis em nossa casa, no consumo de energia e de água. Os interruptores que ficam por desligar e a torneira que fica aberta tempo de mais, mais longe ou mais perto, tem um impacto negativo sobre os ecossistemas. Poupar energia e água melhora o nosso orçamento doméstico e protege a natureza. Podemos também dedicar mais tempo e energia na cidadania ativa, sendo voluntários pela natureza e contagens de aves e ações de restauro ecológico, por exemplo. Podemos e devemos participar em consultas públicas sobre estudos de impacto ambiental de planos e projetos, nas assembleias municipais e outros órgão democráticos, defendendo sempre a natureza. Podemos também ser sócios ativos de uma ONGA e ajudar estas organizações na sua missão de defesa do ambiente e da natureza. Numa sociedade democrática e plural como a nossa, há muitos modos de um cidadão preocupado defender a natureza. O ideal é estar empenhado em todos.

W: O que a SPEA gostaria que as entidades responsáveis fizessem de modo a alterar as classificações destas aves ameaçadas?

Domingos Leitão: Nos próximos anos haverá dinheiro público dedicado ao restauro da natureza. Portugal terá de investir mais dinheiro da União Europeia e do orçamento nacional na proteção das espécies e no restauro dos habitats. Uma Lista Vermelha atualizada é uma excelente ferramenta para definir as prioridades de atuação, em termos de espécies e grupos de espécies. As espécies mais ameaçadas têm de ser alvo de projetos concretos conservação, para melhorar o estado das suas populações. Mas especial atenção deve ser dada a determinados grupos, como as aves de zonas agrícolas, as aves marinhas e os migradores de longa distância. As políticas de financiamento público da agricultura e das pescas têm de mudar para financiar apenas atividades sustentáveis e para remunerar mais quem faz mais pela natureza e pelo ambiente. Também tem de haver mais investimento na gestão adequada das áreas protegidas, em particular as zonas húmidas costeiras, que albergam as maiores populações de migradores de longa distância, e as ZPE (Zonas de Protecção Especial) estepárias do Alentejo, onde existem populações de aves muito ameaçadas.

W: Como comenta o conhecimento e empatia que a sociedade tem sobre estas espécies que estão classificadas como Criticamente Em Perigo?

Domingos Leitão: É bom que as pessoas se preocupem com as espécies que estão em perigo. Se for uma motivação extra para as pessoas e as entidades fazerem mais e melhor pela natureza, então ainda melhor. Esperemos que o sentimento desperte uma ação coletiva consequente e que todos juntos possamos melhorar o estado da natureza à nossa volta. Se restaurarmos a natureza em todo o seu potencial de serviços e benefícios, nós Humanos também ganhamos, em saúde, economia e
qualidade de vida.


Saiba mais.

Descubra aqui mais informações sobre a Lista Vermelha das Aves de Portugal Continental.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.

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