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José ficou fascinado com a resistência desta ave

16.12.2016

Soubemos este mês que os maçaricos-galegos conseguem voar, sem parar, 5.500 quilómetros, numa viagem sobre o oceano entre a Islândia e a Guiné-Bissau. Quisemos saber mais sobre esta capacidade espantosa e falámos com um dos biólogos que fez a descoberta. José Alves, 37 anos, está fascinado por estas aves.

 

Podia ser apenas o título do filme realizado por José Fonseca e Costa em 1996, “Cinco dias, cinco noites”. Mas não é. É também quanto tempo alguns maçaricos-galegos (Numenius phaeopus), aves de plumagem acastanhada e bico escuro fino e comprido, voaram sobre o Atlântico Norte, nas suas migrações entre a Islândia e a Guiné-Bissau. Não pararam, não planaram, não se alimentaram e não se hidrataram ao longo de 5.500 quilómetros, atingindo velocidades de 65 a 85 quilómetros/hora. Graças a geolocalizadores colocados em 10 aves em Junho de 2012 na Islândia, a equipa de José Alves, biólogo da Universidade de Aveiro, descobriu que dois machos e duas fêmeas desta espécie fizeram as suas viagens sem uma única paragem. Os resultados foram publicados num artigo na revista Scientific Report a 9 de Dezembro.

 

Wilder: José Alves é investigador no Departamento de Biologia e CESAM – Centro de Estudos do Ambiente e do Mar da Universidade de Aveiro. O que o faz trabalhar com aves?

José Alves: A minha motivação é o fascínio pelo desconhecido! As aves são capazes de proezas incríveis, que desconhecemos por completo. Gostava de poder descobrir outras façanhas antes que desapareçam…

W: Ficou surpreendido com o que descobriu sobre o maçarico-galego?

José Alves: Sim, foi algo inesperado. Porque para outras espécies do mesmo grupo – como o maçarico-de-bico-direito (Limosa limosa) e o borrelho-grande-de-coleira (Charadrius hiaticula), que voam entre a Islândia (onde se reproduzem) e o Sul da Península Ibérica ou África (onde passam o Inverno) – já tínhamos constatado que efectuam paragens migratórias, mesmo quanto têm a capacidade física para embarcar num voo directo.

 

José Alves com um maçarico-galego com um geolocalizador. Foto: Verónica Mendez
José Alves com um maçarico-galego com um geolocalizador. Foto: Verónica Mendez

 

W: Por que são os maçaricos-galegos “recordistas” no mundo das aves?

José Alves: As aves limícolas são recordistas mundiais neste tipo de voos directos. O recorde absoluto é de uma outra ave que pertence a este grupo, o fuselo (Limosa lapponica), que voa sem parar entre o Alasca (onde de reproduz) e a Nova Zelândia (onde passa o Inverno). São voos que superam os 11.000 quilómetros! Contudo, nenhuma destas aves recordistas de longos voos faz a mesma rota nas duas migrações anuais se puderem seguir uma rota próxima da costa sem aumentar muito a distância de voo. A primeira ave a fazer dois voos sem parar nestas condições é o maçarico-galego!

 

W: Mas teria alternativa?

José Alves: Sim. Quanto está a regressar à Islândia poderia seguir uma rota mais continental sobre a Europa e efectuar paragens migratórias. A verdade é que alguns indivíduos fazem isso mesmo, mas também há outros que voam de regresso novamente sem parar.

 

Paisagem da Islândia. Foto: Verónica Mendez
Paisagem da Islândia. Foto: Verónica Mendez

 

W: Qual é o “plano de viagens” do maçarico-galego?

José Alves: Os maçaricos-galegos deixam África no final de Abril e chegam à Islândia ainda em Abril (se voarem directamente) ou durante a primeira metade de Maio. As viagens de regresso são essenciais para que se possam reproduzir e passar os genes à geração seguinte. Por isso pensa-se que a maioria dos indivíduos é mais cautelosa na viagem de regresso. Caso encontrem condições adversas na sua chegada (por exemplo neve e gelo ainda a impedir o seu acesso aos recursos alimentares) ou fortes ventos contrários, arriscam a sua sobrevivência. A reprodução na Islândia costuma acontecer de Maio a Julho, em zonas húmidas costeiras e em vales de rios glaciares. Os machos chegam antes das fêmeas, para ocupar e defender o território. Depois, em Agosto, partem para África.

 

Maçaricos-galegos na Guiné-Bissau. Foto: José Alves
Maçaricos-galegos na Guiné-Bissau. Foto: José Alves

 

W: E passam por Portugal? Onde os podemos observar?

José Alves: Há maçaricos-galegos que invernam em Portugal, nos estuários do Tejo e do Sado e nas rias Formosa e de Aveiro. Podemos ver alguns indivíduos entre Setembro e Abril. Mas pensamos que, na sua maioria, provêm das populações que se reproduzem na Escandinávia e não da Islândia. É algo que ainda temos de confirmar.

 

W: Como se preparam estas aves para as migrações?

José Alves: As aves limícolas que fazem estes voos de longo curso alimentam-se abundantemente e engordam usando a gordura como fonte de energia durante os seus voos. Algumas aves podem chegar a ter cerca de 50% da sua massa corporal em gordura e algumas são tão pesadas que nem conseguem levantar voo, vendo-se forçadas a parar de se alimentar durante alguns dias para baixarem o peso e poderem embarcar nas suas grandes viagens.

 

Um bando de maçaricos-galegos em voo. Foto: Tómas Gunarsson
Um bando de maçaricos-galegos em voo. Foto: Tómas Gunarsson

 

W: E durante as migrações, que estratégias podem utilizar para rentabilizar o esforço?

José Alves: O grande apoio (e risco) para estas aves é o vento. Com uma excepção, constatámos que todos os maçaricos-galegos partem com ventos favoráveis, tanto da Islândia como de África. Mas claro, não conseguem prever a direcção e força do vento a 4.000 quilómetros de distância e a três a quatro dias no futuro. Por isso podem encontrar ventos contrários nas suas rotas. Pensa-se que algumas aves terão a capacidade de reduzir a carga de ventos contrários alterando a sua altitude de voo e encontrando os ventos mais favoráveis, mas as evidências destas estratégias são ainda ténues.

 

W: Qual a importância destes resultados para o avanço da Ciência?

José Alves: Isto é Ciência fundamental! Por exemplo, permite perceber que há ligações e relações directas entre o Ártico e os trópicos. Alterações que ocorrem de forma mais célere no Ártico (por exemplo o aquecimento global) podem influenciar a dinâmica populacional drasticamente, mesmo que trabalhemos para conservacao e proteccao destas espécies durante o Inverno. Habitats do planeta que geograficamente são tão distantes estão, afinal, intimamente ligados!

 

Cria de maçarico-galego. Foto: Verónica Mendez
Cria de maçarico-galego. Foto: Verónica Mendez

 

W: E para o futuro, o que falta saber?

José Alves: Há linhas potenciais de investigação abertas por estes trabalhos: como podem estas aves exercer exercício (quase) contínuo durante cinco (e mais) dias? Como é que os seus músculos são capazes de tal esforço e como metabolicamente se processa este mecanismo? De que forma resistem à desidratação e ausência de alimento? Que capacidades metabólicas (ou outras) têm para lidar com estas situações extremas?

 

W: No final, o que mais o fascinou nos maçaricos-galegos?

José Alves: A sua capacidade de orientação numa paisagem sem referências, como é o oceano, onde não podem parar para se alimentar e hidratar, ao contrário das aves marinhas. O voo directo de tantos quilómetros é também absolutamente fascinante! Pensar que voam dia e noite, à chuva ou com ventos contrários e não páram até chegar ao destino faz-nos sentir muito pequeninos quando nos queixamos de um voo “desconfortável” de duas horas.

 

[divider type=”thick”]José Alves conta-lhe por que Portugal é um palco do espectáculo mundial da migração das aves:

Portugal está no epicentro da rota migratória do Atlântico e é um pilar fundamental da ponte aérea entre o Norte da Europa e África, não só para as limícolas, mas também para patos, rapinas, planadoras, passariformes, etc.

Serve como local de invernada – nomeadamente nas zonas húmidas do Estuário do Tejo e do Sado, Ria de Aveiro e Formosa e outros pequenos estuários (como o Mondego e Minho) – e como importante local de paragem migratória, quase uma bomba de gasolina onde as aves podem abastecer e descansar.

A par de Doñana, na Andaluzia, o estuário do Tejo é uma das mais importantes zonas de invernada das aves limícolas no sul da Europa. No Estuário do Tejo podemos observar muito facilmente os pilritos-das-praias (Calidris alba) que se reproduzem na Gronelândia, as tarambolas-cinzentas (Pluvialis squatarola) que viajam até altas latitudes e os maçaricos-de-bico-direito (Limosa limosa) que se vão reproduzir à Islândia.

Para o maçarico-de-bico-direito, os arrozais entre Vila Franca de Xira e o Porto Alto (e em toda a envolvência do Tejo) são extremamente importantes não só para a invernada, mas para a sua passagem migratória. Aves de toda a Península Ibérica e de África (Senegal e Guiné-Bissau) concentram-se ali em Janeiro e Fevereiro antes de partirem para as zonas de reprodução no Norte da Europa, formando bandos de 20.000 a 30.000 indivíduos podendo, em alguns anos, atingir os 50.000. É um espectáculo mundial da migração que temos à nossa porta todos os anos…

 

[divider type=”thick”]Agora é a sua vez. Perguntámos a José Alves o que podemos fazer para ajudar as aves limícolas migradoras.

A melhor ajuda que cada um pode dar a estas aves que ligam o mundo é cuidar do planeta e permitir que a vida selvagem que temos à nossa porta possa permanecer. Por exemplo, os fuselos chegaram a ter concentrações de 80.000 a 90.000 aves naqueles mesmos locais. Mas essa população decresceu 75% nos últimos 50 anos, como alias é a tendência generalizada para as aves limícolas.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.

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