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Abutre-preto. Foto: Francesco Veronesi / Wiki Commons

Aprovadas primeiras áreas não vedadas para alimentação de aves necrófagas do sul do país

07.03.2025

Já estão operacionais duas áreas não vedadas para alimentação de aves necrófagas na Herdade da Contenda, Moura, as primeiras aprovadas para o Sul do país. Apesar de estarem legalmente previstas há sete anos, estas áreas só agora começam a sair do papel.

Grande parte do dia de muitos abutres-pretos, grifos, milhafres-reais ou águias-reais é passado a procurar alimento. Muitos deles têm de passar a “fronteira invisível” e encontrar as carcaças de que precisam do lado espanhol.

Abutre-preto. Foto: Juan Lacruz/Wiki Commons

Em muitas áreas de Portugal “não há alimento suficiente” para as aves necrófagas, desde abutres a algumas rapinas, disse à Wilder Eduardo Santos, técnico da Liga para a Protecção da Natureza (LPN) que trabalha há anos para recuperar o abutre-preto (Aegypius monachus), espécie Em Perigo de extinção.

Hoje existem 20 campos de alimentação um pouco por todo o país, como no Douro, Sabor, Gerês, Côa, Malcata, Tejo Internacional, Moura/Mourão/Barrancos e Vale do Guadiana. Estas são áreas vedadas, com regras exigentes e onde, por vezes, não é fácil depositar as carcaças dos animais que morreram naturalmente em tempo útil.

Na Herdade da Contenda vive a segunda maior colónia de abutre-preto de Portugal, com 20 casais. Propriedade da Câmara Municipal de Moura com 5.300 hectares, esta Herdade começou em 2012 a instalar ninhos artificiais de abutre-preto para atrair casais reprodutores para a região. Ali existe um campo de alimentação para aves necrófagas, na zona sul da herdade.

No início deste ano, a Contenda viu serem aprovadas duas Áreas Privadas para Alimentação de Aves Necrófagas (APAAN), as chamadas “áreas não vedadas”, no âmbito da estratégia de reforço alimentar para o abutre-preto desenhada pelo projeto LIFE Aegypius Return (2023-2027). Estas duas áreas – uma para deposição de ovelhas, outra para cabras – situam-se na zona norte da herdade, em zona de montado, muito mais perto das zonas de pastoreio de ovelhas e de cabras, o que facilita a deposição das carcaças dos animais nos pontos designados, assinalados com uma placa.

Grifo (Gyps fulvus) em voo planado. Foto: Noel Reynolds/WikiCommons

Após várias reuniões técnicas e cumprimento de requisitos legais, num processo conduzido pela LPN, a Herdade da Contenda submeteu o pedido de licenciamento das duas APAAN junto do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF). As áreas não vedadas recolheram os pareceres favoráveis das autoridades responsáveis e foi assinado um protocolo entre as várias entidades – Herdade da Contenda (exploração autorizada), LPN (entidade gestora do projeto de alimentação), ICNF e DGAV –, que define os termos de funcionamento das duas APAAN.

São as duas primeiras APAAN do Sul do país e juntam-se às outras duas já existentes, uma na região do Douro Internacional e outra na região Centro.

Para já, o objectivo é conseguir, pelo menos, um total de 66 áreas não vedadas ao longo da região fronteiriça: 56 em Portugal e 10 em Espanha. Mas o ideal é ultrapassar este número, segundo Eduardo Santos.

Qual a diferença entre o campo de alimentação e as APAAN?

Tradicionalmente, o reforço alimentar das aves necrófagas tem sido feito em Campos de Alimentação para Aves Necrófagas (CAAN). “Estes são áreas vedadas, de acordo com normas técnicas muito exigentes e dispendiosas, onde são depositados cadáveres de animais ou suas partes (subprodutos animais), de forma segura e através de uma gestão meticulosa”, explica o projecto LIFE Aegypius Return. “As deposições são autorizadas e supervisionadas pelas autoridades de conservação da natureza (ICNF – Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas) e de veterinária (DGAV – Direção-Geral de Alimentação e Veterinária).”

Na ausência de CAAN, os cadáveres de animais de pecuária ou suas partes (subprodutos animais)  são recolhidos pelo SIRCA (Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos na Exploração) ou, em áreas remotas em que o SIRCA não está disponível, têm de ser enterrados.

Abutre-preto num dos centros de recuperação da Quercus. Foto: Samuel Infante

Desde 2018, a legislação nacional prevê uma outra ferramenta, as Áreas Privadas para a Alimentação de Aves Necrófagas (APAAN). “As APAAN, informalmente designadas de ‘áreas não vedadas’, correspondem a locais identificados no interior das explorações pecuárias em regime extensivo, licenciáveis mediante o cumprimento de determinados requisitos ecológicos e sanitários, onde os proprietários podem disponibilizar as carcaças de gado em regime extensivo que sejam elegíveis, para servir de alimento às aves necrófagas.”

As duas APAAN da Herdade da Contenda vão receber os cadáveres das ovelhas e cabras que morrerem naturalmente, enquanto que o campo de alimentação receberá apenas os restos da caça. “São duas opções que se complementam”, disse Eduardo Santos.

Isto porque a falta de alimento é uma das ameaças às aves necrófagas, segundo identificou um estudo publicado em Julho de 2024, coordenado pela LPN.

Além disso, “o Plano de Ação para a Conservação das Aves Necrófagas identificou como uma ameaça a disponibilidade de alimento, tanto quanto à quantidade como à qualidade, nas áreas que são mais necessárias” a estas aves, lembrou o responsável.

Tanto os campos de alimentação como as áreas não vedadas são necessárias e complementares. Ainda assim, os primeiros “têm custos maiores e uma logística e manutenção mais pesada; dificilmente poderão ser um grande número”. Segundo Eduardo Santos, “só com os campos de alimentação nunca conseguiríamos suprir as necessidades” de alimentação destas aves.

Grifo de pé numa rocha, de asas abertas
Grifo (Gyps fulvus). Foto: Emiliya Toncheva/Wiki Commons

As áreas não vedadas, as APAAN, têm a vantagem de serem mais fáceis de implementar e têm a potencialidade de serem muitas mais. E apesar de cada uma nunca vir a disponibilizar muito alimento – porque a taxa de mortalidade natural num rebanho ronda os 4% ou 5% ano ano -, a verdade é que as APAAN permitem uma alimentação mais natural, à escala da paisagem e com alimento mais disperso pelo território. “A artificialização é reduzida ao mínimo.”

Na opinião de Eduardo Santos, esta é também uma forma de “envolver os produtores pecuários na conservação das aves, que passam a beneficiar de um serviço de ecossistema prestado pelos abutres; poupam na recolha das carcaças e nas emissões de dióxido de carbono do transporte e destruição dessas carcaças”.

Neste momento, adiantou, “já há várias APAAN previstas – por exemplo no Douro, no Côa ou no Tejo Internacional -, estando os pedidos de licenciamento em preparação”.

“Gostaríamos que este trabalho desse as bases e a ajuda necessária para que os produtores extensivos possam implementar as APAAN mais facilmente”, para que estas áreas deixem de estar apenas no papel.

“Todos os parceiros do consórcio (LIFE Aegypius Return) estão a trabalhar com as autoridades e com os proprietários de explorações pecuárias em torno das colónias de reprodução do abutre-preto para concretizar esta medida de conservação durante os próximos meses”, segundo um comunicado da LPN.


Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.

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