abutre em voo
Abutre-preto. Foto: Artemy Voikhansky/Wiki Commons

A difícil e delicada tarefa de marcar um abutre-preto (e para que serve)

Início

Milene Matos e Carlos Pacheco, ligados ao projeto LIFE Aegypius Return, dedicado à conservação do maior abutre da Europa, explicaram à Wilder tudo o que se passa.

“Terminámos há duas horas a marcação da última cria de abutre-preto que tínhamos planeado para este ano”, comenta Milene Matos, coordenadora do LIFE Aegypius Return. Liderado pela ONG europeia Vulture Conservation Foundation, o objetivo é recuperar as populações desta espécie Em Perigo de extinção, na zona da fronteira luso-espanhola.

É numa tarde quente de agosto que Milene Matos fala com a Wilder sobre as crias que já foram marcadas com emissores GPS/GSM no âmbito do projeto. Este ano marcaram-se 34. O maior abutre da Europa é uma ave imponente, medindo três metros da extremidade de uma asa à outra. Desaparecido de Portugal na década de 70, só voltou a nidificar aqui em 2010. Os números têm vindo lentamente a aumentar e hoje a espécie já nidifica em cinco locais diferentes do país, mas ainda há muitas ameaças por resolver. Entre essas estão as linhas elétricas, os pesticidas químicos e presas contaminadas com chumbo.

Abutre-preto no centro de recuperação de fauna selvagem do CERAS, em Castelo Branco. Foto: Samuel Infante/Quercus

E graças aos emissores, se um desses abutres ficar doente ou ferido, ainda pode ser salvo. “Conseguimos perceber que está caído no chão e vai alguém rapidamente ao local, talvez a tempo ainda de o apanhar com vida”, nota Milene.

Mas não só. Como ficam a conhecer as preferências de habitat dos abutres, a informação é utilizada para reagirem a anúncios de obras públicas que possam afetar a espécie. “Em consulta pública já fizemos pronúncias e comentários, por exemplo perante o anúncio de novas linhas de transporte de eletricidade, o que permitiu que essas linhas fossem marcadas para não haver colisões”, sublinha a coordenadora do LIFE Aegypius Return.

Corrida contra o tempo

Este ano, os trabalhos começaram em meados de julho e terminaram a 9 de agosto. Antes foi necessário vigiar os ninhos ao longe e decidir que crias seriam marcadas, fazendo contas à idade. É que se aquelas forem demasiado novas, não suportam bem o peso do emissor; se forem demasiado velhas, assustam-se e atiram-se do ninho sem saberem voar.

O momento certo é de facto bastante apertado, explica Carlos Pacheco, 52 anos, uma das pessoas que tratam da marcação e da anilhagem no âmbito do projeto. “Precisamos de marcar as crias quando têm entre 85 a 95 dias.”

Cria de abutre-preto marcada no Parque Natural do Douro Internacional. Foto: Palombar

É logo às primeiras horas do dia que tudo começa, às vezes antes de o sol nascer, para fugir ao calor. Carlos Pacheco, que é investigador no BIOPOLIS Cibio (Universidade do Porto) e trabalha desde há muito na anilhagem e marcação de grandes aves, já tem lidado com muitas espécies, mas admite que os abutres-pretos são um caso à parte. “São especialmente difíceis porque têm um bico extretamente cortante e forte”, diz. “Com o bico, tentam cortar as fitas que prendem o emissor, e usam muito as patas quando entram em escaramuças.”

Até mesmo os pontinhos que Carlos dá nas tiras que seguram o aparelho, que fica a parecer uma pequena mochila às costas do abutre, têm de ser dados com um fio de nylon torcido – mais forte do que o fio de algodão usado para outras espécies mais pacientes, mas suficientemente fraco para se ir desgastando ao longo dos anos até cair, quando os emissores já não funcionarem.

Subida a um ninho de abutre-preto num pinheiro, na Herdade da Contenda. Foto: LPN

Com um diâmetro de 1,5 metros ou mais, os ninhos costumam ser reutilizados pelo mesmo casal, ano após ano, e podem estar construídos por exemplo no topo de uma azinheira, como acontece muito no Parque Natural do Tejo Internacional, ou no alto de um pinheiro, como sucede por vezes na Serra da Malcata e é comum na Herdade da Contenda, no Alentejo. No caso das azinheiras basta uma escada extensível para chegar lá acima, mas em árvores com 16 a 20 metros de altura, como alguns pinheiros, só com equipamento de escalada – um processo “muito cansativo”, “temos de nos içar com a ajuda de braços e pernas, sempre em tensão”, diz o investigador.

“Conseguir galgá-lo”

Chegado ao topo, “pode ser extremamente complicada a abordagem ao ninho”, diz Carlos Pacheco, que mede 1,85 metros e pesa 95 quilos. “O desafio é conseguir galgá-lo, temos de andar nos ramos à volta, e quando o ninho está mesmo no centro tudo isso é muito difícil.” E mesmo já no local, as coisas não ficam mais fáceis. Estamos cara a cara com uma pequena ave que não é tão pequena assim: com três meses já pesam oito a nove quilos, praticamente dois garrafões de água, mas estes garrafões de água tentam atacar-nos. “Algumas ficam muito quietas e é tranquilo, mas outras ainda estamos em baixo e já estão a ameaçar-nos com as patas e a tentar bicar-nos. Quando já são grandes, há crias que nos recebem com as asas e o bico aberto a fazer-nos frente!”, descreve animadamente o investigador do CIBIO.

Cria de abutre-preto no ninho, no concelho da Vidigueira, Alentejo. Vídeo: Carlos Carrapato/ICNF

Numa situação dessas, é importante ter sangue frio, sublinha. “Não a podemos fixar diretamente, temos de ser muito lentos e cuidadosos. Às vezes ela anda ali aos saltos e temos de a ignorar para ver se acalma um bocadinho. Depois, tento agarrá-la com a máxima segurança possível, pode ser por uma pata, se estiverem de pé, mas às vezes tem de ser pela cabeça… Felizmente nunca me saltou nenhuma do ninho, embora já tenha passado por situações difíceis.”

Carlos Pacheco tapa-lhe depois a cabeça com um caparão, uma espécie de pequeno capuz, porque com isso “ficam completamente tranquilas, tendem a ficar deitadas.” Depois de empurrar delicadamente a cria para dentro de um grande saco, fecha-o em segurança e envia-o para baixo agarrado a uma corda com um mosquetão, com a ajuda de outro membro da equipa. “O saco vai oblíquo para passar entre os ramos. Se for às nossas costas, o bicho vai desconfortável, mas com a corda a descida é muito mais controlada, tem um sistema de travamento.”

Sangue, penas e biometria

Na verdade, este é todo um trabalho de equipa. Além da pessoa que marca e anilha o abutre, está sempre presente um veterinário e membros de vários parceiros do projeto, que recolhem sangue e algumas penas para serem analisados em laboratório e tiram várias medidas à cria. Tudo de acordo com um protocolo pré-estabelecido, para ser sempre igual.

Trabalhos de recolha de amostras biológicas numa cria. Foto: LIFE Aegypius Return

“Asas, bico, tarso, unhas, há várias informações de referência para uso veterinário”, detalha Milene Matos. As análises vão também servir para determinar o sexo e a idade da cria e se esta foi contaminada por chumbo, pesticidas ou remédios – incluindo substâncias mortais para os abutres, como o diclofenac. Apuram-se ainda os níveis de glicose, de potássio e outros, para ajudarem no conhecimento ainda incipiente sobre a espécie. Quanto às penas, estão a ser utilizadas no âmbito de um estudo científico sobre stress.

Finalmente com a cria marcada e anilhada e tudo tratado, é altura de a devolver ao ninho num processo inverso ao anterior. Chegados lá acima, a última coisa a sair é o caparão, “e logo que isso acontece desapareço para baixo”, descreve Carlos Pacheco. O ninho será ainda vigiado ao longe, para assegurar que os progenitores regressam, e no dia seguinte ainda se faz uma visita para assegurar que ficou tudo bem.

Por estes dias, já terminadas as marcações que estavam planeadas, os trabalhos continuam com a vigilância regular dos ninhos e das crias, para confirmar quantas no final irão sobreviver. Durante o mês de setembro, é provável que estes abutres-pretos deixem o ninho e iniciem a sua dispersão, explorando novos territórios antes de se tornarem adultos.

E graças aos emissores que carregam, será agora possível aprender mais sobre o seu comportamento durante essas longas viagens – informação importante para a conservação desta espécie. “Conseguimos perceber quando é que estão a voar, em movimento ou a dormir, e quais são as áreas de alimentação que procuram”, exemplifica a coordenadora do LIFE Aegypius Return.

Adultos de abutre-preto. Vídeo: Carlos Carrapato/ICNF

Iniciado no final de 2022, este projeto é co-financiado por fundos comunitários e liderado pela Vulture Conservation Foundation. Além dessa ONG europeia, estão envolvidos outros nove parceiros beneficiários, incluindo a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves, a Liga para a Proteção da Natureza, a Palombar e a espanhola Fundación Naturaleza Y Hombre. Nos trabalhos que têm vindo a ser feitos, o projeto conta ainda com o apoio de outras entidades, como o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, a Quercus, a Rewilding Portugal e as universidades do Alto Douro e Trás-os-Montes, de Oviedo e de Murcia.

Inês Sequeira

Foi com a vontade de decifrar o que me rodeia e de “traduzir” o mundo que me formei como jornalista e que estou, desde 2022, a fazer um mestrado em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova. Comecei a trabalhar em 1998 na secção de Economia do jornal Público, onde estive 14 anos. Fui também colaboradora do Jornal de Negócios e da Lusa. Juntamente com a Helena Geraldes e a Joana Bourgard, ajudei em 2015 a fundar a Wilder, onde finalmente me sinto como “peixe na água”. Aqui escrevo sobre plantas, animais, espécies comuns e raras, descobertas científicas, projectos de conservação, políticas ambientais e pessoas apaixonadas por natureza. Aprendo e partilho algo novo todos os dias.

Don't Miss