Paulo Catry, biólogo, escreve sobre um dos mais notáveis cantores do mundo das aves, o rouxinol. É em abril que os concertos noturnos são os melhores; nas noites de maio já se vão calando. É aproveitar enquanto ainda há espectáculo.
Maio 2022
Se não fosse a escuridão viam-se, misturadas no silvado, as roseiras bravas floridas (de rosas singelas, mas lindas de morrer). O pequeno regato que corre ali por debaixo está reduzido a um fio. Não há distrações de cores nem de ruídos: o grande palco da noite está, todo ele, à disposição do rouxinol.
E o rouxinol aproveita. Se o tempo estiver calmo, ouve-se a léguas. De perto, o canto é de cristal. Sem outros entreténs, oiçamos com atenção o concerto que sai das entranhas da selva ribeirinha. “Duu-duu-duu-duu-duu-duu-duu”, num crescendo afirmativo, seguido de uma explosão “tidluitidididui!” de pasmar. Mas mal há tempo para espantos e respirações. Um ou dois segundos de pausa e vem já outra frase, tão límpida quanto a primeira, também curta, mas completamente diferente. E depois outra, e outra e outra ainda. Cada uma invariavelmente diferente da precedente. Às vezes o rouxinol faz que vai repetir-se, mas o verso que parecia igual traz no final uma ornamentação distinta. Ouviram? Foi uma brincadeira. Anda nisto durante tempos sem fim, sempre variando. Mas que artista!
De Shakespeare a Fernando Pessoa, de Beethoven à Amália, dos gregos clássicos à modernidade, toda a gente fez alusão ao rouxinol. Mais que alusão, fizeram do rouxinol personagem e musa inspiradora. O rouxinol é a ave nacional do Irão e da Ucrânia*. Rouxinol é apelido de portugueses e de tantos outros, noutros idiomas. Não é difícil encontrar textos, até em obras ditas científicas, que afirmam que o canto do rouxinol é a expressão sonora mais sublime do mundo natural.
O rouxinol é uma ave comum entre nós, praticamente só falta no litoral do Minho e nas ilhas. Mas não se encontra nas grandes cidades. Muito discreto na plumagem e recatado nos hábitos, ninguém dá por ele quando não canta. Mas quando canta, senhoras, faz-se ouvir!
Os rouxinóis chegam em março de além-mar e começam a cantar em força em abril; neste mês os concertos noturnos são os melhores**. Nas noites de maio já se vão calando, salvo algum infeliz que não pôde atrair uma namorada que lhe desse uma postura de 4 ou 5 ovos cor-de-azeitona. O canto noturno serve para a corte. Depois de emparelhados, escusam já os machos de se esfalfar com serenatas ao luar; continuam de dia, anunciam a sua presença e assim defendem o território, desencorajando eventuais invasores.
É aproveitar, que o grande concerto do mais prestigiado dos cantores alados está a chegar ao fim. Em junho ficam só uns restos que já mal dão para despedida.
“Rouxinol repenica o cante,
E ao passar da passadeira,
Nunca mais tornes a Beja (oh ai),
Sem passares à Vidigueira”.
Apostava que mais gente em Portugal identifica o rouxinol do cante que o canto do rouxinol.
Toda a gente conhece o rouxinol, de nome, e as rosas dos jardins.
* O nosso rouxinol é o rouxinol-comum Luscinia megarhynchos, o rouxinol da Ucrânia e do nordeste da Europa é o Luscinia luscinia, mas são quase indistinguíveis, embora o nosso tenha um canto mais refinado.
** Há outros passaritos para além do rouxinol-comum que cantam de noite, mas são mais escassos e menos ouvidos: o rouxinol-bravo Cettia cetti e o rouxinol-dos-caniços Acrocephalus scirpaceus são os dois exemplos mais salientes. Em noites de lua cheia, as cotovias-dos-bosques Lullula arborea também podem cantar com afinco. Outros pássaros cantam de noite se expostos a iluminação artificial.
Saiba mais.
Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do Mare – Marine and Environmental Sciences Centre, Ispa – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais. E também os artigos publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.