Amieiros ribeirinhos do Caima: reflexos no rio e na memória do escritor

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Todos os meses, o projecto “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”, ligado à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, dá-lhe a conhecer as paisagens e a biodiversidade que povoam as obras literárias de escritores portugueses.

Absorto, quase oculto pelos amieiros, o cigarro fumegando entre os dedos como o vício me impõe, eu via a água passar, branda, meiga e cristalina. Via-a romanticamente, que românticas haviam sido, desde menino, sobretudo depois de emigrar, as minhas relações com a aldeia. Via-a ladeando a pequenina praia, em frente de mim, como se lhe acariciasse, leve e transparente, a sua areia fina e doirada. E via-a deslizar, com um verde escuro já profundo, à sombra dos amieiros, quase rente às solas dos meus sapatos. Dir-se-ia que me cumprimentava, que me sorria docemente, que também ela se lembrava de quando eu vinha ali, com outros garotos, depois de sairmos da escola, aprender a nadar.

 Ferreira de Castro, “A Aldeia Nativa” in Os Fragmentos (1974)

Quando o jovem Ferreira de Castro (1898-1974) chegou ao interior da Amazónia, em 1911, para ser seringueiro, levava na bagagem de memória os reflexos e murmúrios da vegetação marginal ao Caima, rio que banha Ossela, sua freguesia natal. Aqui pontuavam – pontuam ainda –, entre salgueiros, choupos e freixos, as silhuetas eretas dos amieiros, cuja graciosidade contrastava com a imponência do emaranhado florestal amazónico. Era uma memória visual e afetiva, essa das árvores ribeirinhas debruando a correnteza branda nascida na Serra da Freita, que alimentava courelas e lameiros, gados e lares da “aldeia nativa”.

Serra da Freita. Foto: Ricardo Oliveira/WikiCommons

No futuro escritor, a evocação do ambiente rural beirão gerou vibrações emocionais que ecoaram vida fora, vindo desaguar em “A Aldeia Nativa”, texto que reafirma a componente florística como quase sempre indissociável da temática fluvial na sua literatura. “O Caima, minha paixão de água azul, fleumática, refletindo a longa teoria dos amieiros ribeirinhos (…)” será a imagem literária que com mais limpidez sumariza essa aliança. É também expressão de que esta árvore, sagrada para os Celtas, na visão castriana ganha significado por integrar as galerias ripícolas nas margens do Caima e outros cursos hídricos permanentes  ̶  comunidades arbóreas espontâneas que as políticas ambientais sagrariam como valioso habitat natural a proteger.

Região portuguesa na qual se enquadra este excerto literário. Autoria: Daniel Alves

Urbano Tavares Rodrigues via em Ferreira de Castro “uma relação mística com a natureza”, explicação possível para a ausência de saber científico na obra do amigo. Nela ouvimos é a voz de um homem que assimilava a paisagem com os sentidos, lhe reagia com um encantamento livre de razão e no-la devolvia filtrada por algo próximo do “sentimento de natureza” que Unamuno descreveu em Por terras de Portugal e de Espanha. Por isso, o nome científico do amieiro, Alnus glutinosa, ou a taxonomia desta caducifólia da família Betulaceae, espontânea no nosso país, jamais afloraram a uma página castriana; tão-pouco alusões ao máximo de 10-12 metros de porte que atinge por cá, ou à viscosidade das folhas que batizou a espécie.

Também não é essa a função da literatura. Ficasse por conta do(a)s leitore(a)s a pesquisa sobre esta árvore intolerante à secura estival mas muito resistente à água, que encontramos com mais prevalência nas regiões Norte e Centro.

Amieiro. Foto: Giovanni Caudullo/WikiCommons

Querendo muito conhecer o seu papel ecológico na manutenção e consolidação das margens, na fixação de azoto atmosférico e como fonte nutritiva para borboletas e pássaros, podiam saciar a curiosidade na letra miudinha dos manuais da Ecologia e da Botânica.

O fascínio de Ferreira de Castro pelos elementos paisagísticos “rio” e “árvore” transparece igualmente da sua ficção. Em Emigrantes (1928), o vale de Ossela é cenário da partida e, mais tarde, do desalentado retorno do lendário personagem Manuel da Bouça; e o rio, a nervura vital dessa típica paisagem produtiva da Beira Litoral, onde se desenrola um fio narrativo sobre a triste condição humana. Em “O Natal em Ossela” (1933), uma história do Inverno fustigando vale, casas e povo, barrada pela censura política, lá estão os “esqueletos” dos amieiros, sujeitos à ventania mas adornados por florinhas reunidas em “amentilhos”, uma floração invernal escondida do(a) leitor(a) pelo noturno da cena.

Amieiro junto a um rio. Foto: Lidine Mia/WikiCommons

A água passa, mas as raízes permanecem. Fazendo fé na longevidade máxima de 150 anos, certamente os amieiros que hoje resistem junto às ruínas do moinho de água do Caima são os mesmos que, no dealbar do século XX, velavam os banhos dos garotos de Ossela.


Ana Cristina Carvalho pertence ao grupo de investigadores ligados ao  “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”. Esta é a nona crónica da série Escrita com Raízes.

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