Paulo Catry, biólogo, foi novamente a Trás-os-Montes à procura do fascinante lobo-ibérico. Há anos que o faz, atraído pela vontade de vislumbrar um pouco destes animais, nas serranias. Desta vez, nem quer acreditar no que teve a sorte de ver.
Trás-os-Montes, 2 maio 2022
Os lobos são os animais mais carismáticos que existem (digo eu) pela forma como nos são próximos e ao mesmo tempo estranhos, pelo modo como nos enfrentam. Não são inócuos, causam estragos. Como nenhum outro animal suscitaram ódios ao longo de séculos (e, mais recentemente, também afetos). Resistiram milagrosamente. Em várias partes da Europa estão agora em crescimento e em expansão. Infiltram-se.
Os primeiros que vi e ouvi foi há já uns 30 anos, perto daqui. Havia adultos e lobachos ainda pequenos. Nos anos mais recentes comecei a tirar dias de férias para vir procurá-los. Passo dias e dias no monte. Encontro-os só muito ocasionalmente, nem todos os anos os vejo. Encontro-os só porque o Luís Miguel me vai dizendo onde procurar, o que sei de lobos aprendi com ele, com mais alguma coisa dos livros. Para além de ensinamentos, a família Moreira dá-me excelente acolhimento nestas deambulações, bem hajam.
Tenho visto lobos isolados. Já aconteceu ver meia-dúzia de lobachos brincalhões ao raiar do dia. Já aconteceu também, várias vezes, passar uma semana inteira no monte à espera… e vir embora sem lobos para contar (mas contente de ver uma pegada bem desenhada no molde de uma poça seca).
Os lobos menos difíceis de ver vivem na terra que ninguém quer. Xistos ou granitos em altitude, paupérrimos, quase nem pássaros há nestes ermos perdidos. Em plena primavera, a cada momento contam-se os cantos pelos dedos de uma só pata: uma cotovia-do-bosque, uma toutinegra-do-mato, duas cias atrevidas. Se esperarmos, a lista cresce, mas os cantores são sempre esparsos, como o são as flores rasteiras.
Terra fria, urze, carqueja, lajes de xisto, solo rasgado por máquinas poderosas nas plantações de coníferas. O monte selvagem não é pristino, dantes fazia-se centeio, hoje exploram-no com operações de uma violência desmedida, sulcos, estradões esculpidos numa rede de cicatrizes. Mas tirando esses dias em que as máquinas desventram a serra, não anda por aqui ninguém. Há espaço para a bicheza.
Nos vales correm ribeiras cristalinas por entre amieiros, carvalhos, aqui e ali vidoeiros e negrilhos. Um corço no lameiro. Perto da água, neste tempo, crescem violetas, prímulas, narcisos, jacintos-do-campo: um vislumbre do paraíso. Pelas encostas íngremes, o mato prende e arranha. Ao fundo destes barrancos não chega ninguém que não tenha, em estado já avançado, a loucura das plantas e dos bichos bravios.
De madrugada o termómetro marcou um único grau acima do zero, ao passar no pontão da ribeira – e estamos em maio! Veados no alcatrão da estrada deserta. Nas cristas o sol brilha, luminoso, mas sem calor ainda. Silêncio na terra fria.
Já passei tantas vezes aqui, neste estradão de terra batida, vou atento mas ensonado, antecipo pegadas e outros vestígios, vai ser boa a caminhada. Subitamente, vultos no caminho, mais veados certamente. As sombras desaparecem num relance, eram três; os olhos dizem ao cérebro que eram lobos, mas este não acredita. Um muro de esteva e urze nega o tira-teimas. Avanço rapidamente até a um ponto de onde julgo poder ter uma visão mais desimpedida.
Saio do carro e na encosta em frente, por entre o mato esparso, há lobos silenciosos a olhar de frente para mim. Começo a tremer de excitação, não sei o que fazer ou pensar. Alguns lobos têm ainda restos de inverno vestidos, pelagem farfalhuda, cauda farta, parecem enormes, a máquina fotográfica ficou dentro do carro. Começam a mexer-se, não vão demorar. Calma, tantos lobos imponentes, tenho ao menos que conseguir contá-los. Chego a oito, ofegante, o cérebro ainda não acredita.
Depois cometo o erro de abrir a porta do carro em busca da máquina fotográfica, atrapalho-me com os comandos e, quando olho, desapareceram, todos eles! Esfumar-se é uma arte de lobo aperfeiçoada ao longo de séculos.
Passo mais uma hora por ali à procura, vou para trás e para a frente, mas sei que o milagre foi-se, definitivo. A memória visual começa logo a esbater-se, como num sonho madrugador já despido de detalhes, ficam só umas palavras que descrevem sem graça nem substância aquilo que vi; e ao lado está o cérebro que não acredita. O cérebro consciente sabe que praticamente ninguém por estas terras vê alcateias de oito lobos adultos, juntos à luz do dia. Só se for algum mentiroso, isso sim.
Passei anos a sonhar ver uma alcateia assim. E agora, meia-hora passada, já nem sei dizer como foi, a miragem fugaz esboroou-se em neblina. Etéreos por arte e condição – já se foram, eram lobos.
* as fotografias que acompanham esta crónica, tiradas em Trás-os-Montes ao longo de vários anos, não são da alcateia aqui descrita.
Saiba mais.
Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do Mare – Marine and Environmental Sciences Centre, Ispa – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais. E também os artigos publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.