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Peixes migradores: “A construção de uma ponte-açude em pleno Estuário do Vouga terá consequências muito negativas”

08.10.2021
Truta (Salmon trutta). Foto: C. Alexandre

A Wilder entrevistou Pedro Raposo de Almeida, professor catedrático na Universidade de Évora e especialista em peixes migradores, sobre o projecto da futura Ponte-Açude no Rio Novo do Príncipe no rio Vouga, em Cacia, concelho de Aveiro.

O aviso foi lançado publicamente pela associação ambientalista ZERO no final de Setembro, alertando para o facto de este projecto não prever a construção de raiz de uma passagem para peixes, o que “coloca em risco a conservação de peixes migradores”.

O objectivo da nova obra é “travar o avanço da cunha salina e assegurar a disponibilidade de água doce para fins industriais – principalmente para fornecimento de água doce à unidade fabril de produção de pasta de papel da Navigator – e agrícolas”, segundo a associação. No entanto, por se desenvolver numa Zona Especial de Conservação, destinada a garantir a conservação de algumas espécies de peixes migradores, a ZERO advoga “uma nova avaliação de impacte ambiental (18 anos após a anterior), a par da instalação imediata de um dispositivo de passagem para peixes”.

Estuário do rio Vouga. Foto: Paulo Talhadas dos Santos

Em causa está o futuro de peixes anádromos como o salmão e a lampreia-marinha, por exemplo, que nascem em água doce e se deslocam para o mar, onde crescem até atingir a maturidade. É então que regressam à água doce para desovar.

Para Pedro Raposo de Almeida, investigador do MARE-Centro de Ciências do Mar e do Ambiente na Universidade de Évora, esta obra “terá consequências muito negativas”. “Estes peixes [anádromos] só se reproduzem em água doce, e impedi-los de alcançar esses habitats é condená-los a uma morte sem propósito”, salienta.

E mesmo construir uma passagem para peixes “não é panaceia para todos os males.” “Temos de perceber que não existem passagem para peixes 100% eficientes, o que significa que apenas uma parte da população adulta capaz de se reproduzir vai conseguir transpor o obstáculo e alcançar as áreas de reprodução”, avisa, notando que criar condições de habitat e monitorizar esses equipamentos – o que quase não acontece em Portugal – é essencial.

WILDER: Qual é a situação, em Portugal, dos peixes anádromos que podemos encontrar no Vouga?

Pedro Raposo de Almeida: Na última edição do Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal [publicada em 2005], a generalidade das espécies migradoras diádromas [migradoras entre água doce e água salgada e vice-versa] apresentava um estatuto de ameaça muito preocupante: no caso do sável e da enguia foram classificadas como Em Perigo; o salmão, a truta-marisca e a lampreia-de-rio como Criticamente Em Perigo; a lampreia-marinha apresentava a classificação de Vulnerável.

Apesar dos bons resultados que temos obtido no caso do Mondego, onde o trabalho desenvolvido pela equipa que coordeno da Universidade de Évora / MARE – em parceria com diferentes entidades e com os pescadores profissionais – tem vindo a recuperar as populações de sável e lampreia-marinha nessa bacia hidrográfica, infelizmente é pouco provável que a revisão do Livro Vermelho dos Peixes Dulciaquícolas e Migradores, que está a ser executada neste momento – nos traga boas notícias. É previsível que aqueles estatutos de ameaça se mantenham inalterados.

W: Mas qual é a importância do rio Vouga para os peixes migradores?

Pedro Raposo de Almeida: O Vouga é um dos rios portugueses onde ainda ocorrem importantes populações de várias espécies de peixes migradores anádromos, designadamente o sável, a lampreia-marinha e a truta-marisca. Estas espécies, que têm obrigatoriamente de se reproduzir em água doce, são especialmente vulneráveis à fragmentação de habitat provocada por açudes e barragens que interrompem o seu percurso migratório.

Truta (Salmon trutta). Foto: C. Alexandre

O conceito de continuidade longitudinal dentro da mesma bacia hidrográfica é consensual e facilmente percetível pela generalidade das pessoas. Contudo, há também a questão da continuidade latitudinal, ou seja, a presença de populações viáveis em bacias hidrográficas contíguas. Tendo em conta que o Douro há muito que perdeu as suas populações de sável e lampreia-marinha, é fundamental que o Vouga mantenha as populações destas espécies – particularmente para o caso do sável.

O esforço que tem sido feito em Portugal para a reabilitação das populações de peixes migradores ao longo da última década pode ser posto em causa se deixarmos de olhar para este problema de forma holística e integrada, envolvendo todos os aqueles que direta- e indiretamente – interagem com estas espécies.

W: A inexistência de uma passagem para peixes no projecto da nova ponte-açude no estuário do Vouga está a ser contestada. Em termos gerais, como é que funcionam estas passagens?

Pedro Raposo de Almeida: Os dispositivos de transposição piscícola, vulgarmente conhecidos como escadas para peixes, são infraestruturas acopladas às barragens, açudes e outras barreiras intransponíveis para os peixes. Existem diferentes tipos, desde passagens técnicas como a que existe no Açude-Ponte de Coimbra – utilizada anualmente por mais de um milhão de peixes – passando pelas rampas de peixes semi-naturalizadas também existentes nos açudes do Mondego, e até elevadores e eclusas para peixes.

Passagem de peixes do Açude-Ponte de Coimbra. Foto: P. R. Almeida

Projetar uma passagem destas que seja eficiente não é uma tarefa simples, porque o primeiro desafio é conseguir atrair os peixes para a sua entrada. E depois garantir que as condições hidráulicas no seu interior são adequadas às espécies-alvo, permitindo a passagem dos peixes através destas infraestruturas.

W: Mas essa poderá ser uma solução para os peixes que ficarem impedidos de passar a futura ponte-açude?

Pedro Raposo de Almeida: A instalação de uma passagem para peixes não é a panaceia para todos os males. Temos de perceber que não existem passagens para peixes 100% eficientes, o que significa que apenas uma parte da população adulta capaz de se reproduzir vai conseguir transpor o obstáculo e alcançar as áreas de reprodução. E eficiências inferiores a 50% são comuns, traduzindo-se numa redução substancial do potencial reprodutor da espécie.

Mas o desafio para estes peixes não termina no momento em que ultrapassam a barragem, pois ainda têm de encontrar a montante habitats adequados à sua reprodução, nem sempre existentes. Finalmente, temos que garantir que os juvenis conseguem realizar a migração trófica em direção ao mar em segurança, algo que não é possível acontecer na generalidade das barragens para produção hidroelétrica.

É por todas estas razões que as passagens para peixes devem ser monitorizadas: para termos a certeza de que estão a cumprir a função para a qual foram construídas e que as populações de peixes migradores evidenciam sinais de recuperação.

W: Estes peixes que sobem o rio contra a corrente regressam normalmente aos locais onde tinham nascido?

Pedro Raposo de Almeida: De todas as espécies migradoras diádromas que ocorrem em Portugal, apenas o salmão exibe um comportamento designado por ‘homing’. Ou seja, depois da fase de crescimento no mar regressa à bacia hidrográfica onde eclodiu anos antes. Chegam a selecionar o afluente onde os seus progenitores depositaram os ovos que lhes deram origem.

Salmão (Salmo salar). Foto: Hans-Petter Fjeld/Wiki Commons

Contudo, há outras espécies que não exibindo um comportamento de ‘homing’ têm um certo grau de fidelidade geográfica, ou seja, regressam à mesma bacia hidrográfica, ou optam por um rio que lhe seja adjacente. Daí a importância de manter as populações do Vouga que estão, em parte, associadas às do Mondego.

W: E o que acontece aos peixes que ficarem impossibilitados de chegar aos locais de desova?

Pedro Raposo de Almeida: Pode acontecer uma de duas coisas. Em primeiro lugar, se a jusante das barragens existirem habitats dulciaquícolas que proporcionem locais de desova, poderão reproduzir-se e manter uma pequena fração da população viável.

É o que acontecia no Mondego antes da construção da passagem de peixes do Açude-Ponte de Coimbra. Antes de 2011, os sáveis e as lampreias-marinhas tinham que se reproduzir nos 15 quilómetros de rio que existem entre Coimbra e o açude da Formoselha, a jusante.

Passagem de peixes do açude da Formoselha no Mondego. Foto: P. R. Almeida

Em alternativa, se a jusante das barragens não existirem habitats dulciaquícolas – como é o caso do Douro em que a barragem de Crestuma-Lever está localizada em pleno estuário – as espécies de peixes migradores anádromas são eliminadas dessa bacia hidrográfica. Estamos a falar de peixes como a lampreia-marinha, o sável, a truta-marisca, por exemplo.

É por essa razão que a construção da Ponte-Açude no Rio Novo do Príncipe, em pleno estuário do Vouga, terá consequências muito negativas sobre as populações de peixes migradores. Estes peixes só se reproduzem em água doce, e impedi-los de alcançar esses habitats é condená-los a uma morte sem propósito.

W: O Vouga já tem outras passagens para peixes? E noutros rios em Portugal?

Pedro Raposo de Almeida: Na parte inferior da bacia hidrográfica do Vouga não existem passagens para peixes. No Vouga a migração é interrompida pela mini-hídrica da Grela, e num dos principais afluentes, o rio Águeda, existem inúmeros obstáculos que impedem a progressão destes peixes até aos locais de reprodução.

É aliás neste contexto que surgiu o projeto LIFE ÁGUEDA, que entre outras ações prevê a construção de cinco passagens para peixes e a remoção de diversos obstáculos nos rios Águeda e Alfusqueiro. As obras terão início antes do final do ano.

Por outro lado, há passagens de peixes construídas em muitas barragens e mini-hídricas existentes em Portugal, mas a generalidade não funciona adequadamente. Aliás, a maioria nunca foi monitorizada, por isso o desconhecimento sobre a sua eficiência é quase absoluto. Indiretamente, podemos concluir que não estão a cumprir a sua função, porque o que se regista é uma depleção generalizada das populações de peixes – em particular das que necessitam de fazer migrações.

O ex-libris das passagens para peixes em Portugal é a que está instalada no Açude-Ponte de Coimbra. Foi construída pela Agência Portuguesa do Ambiente e desde 2013 é monitorizada pela Universidade de Évora / MARE. Por ano, é utilizada por mais de um milhão de peixes.

W: A operação de comportas programada de acordo com o período migratório, pode servir como alternativa a uma passagem para peixes?

Pedro Raposo de Almeida: A operação das comportas visa impedir a progressão da cunha salina para montante, o que significa que uma boa parte do ano vão estar fechadas durante a maré enchente – um período utilizado pelos peixes migradores para progredirem para montante. A abertura das comportas durante a maré vazante também não dá garantia de passagem, porque a abertura será apenas parcial, junto ao fundo, e com potencial para gerar forças hidráulicas que a natação dos peixes não consegue superar.

Além do mais, a dinâmica dos sistemas estuarinos é extremamente complexa, e construir uma barreira que impeça a livre circulação da massa de água significa que substituímos o gradiente salino que se observa naturalmente por um cenário onde a jusante da Ponte-Açude passará a existir água com uma salinidade próxima de 30 ‰ em preia-mar (a água do mar tem uma salinidade próxima de 36 ‰), e imediatamente a montante teremos água doce (0 PSU). [A unidade da salinidade é g/kg, ou seja, partes por mil, e representa-se como ‰.] Esta passagem abrupta entre meios de salinidades tão distintas provoca graves perturbações fisiológicas em muitas espécies de peixes e invertebrados, contribuindo para desequilíbrios ecológicos no ecossistema estuarino. 


Saiba mais.

Assista a um vídeo sobre o projecto de reabilitação do Mondego para os peixes diádromos, aqui.

Inês Sequeira

Foi com a vontade de decifrar o que me rodeia e de “traduzir” o mundo que me formei como jornalista e que estou, desde 2022, a fazer um mestrado em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova. Comecei a trabalhar em 1998 na secção de Economia do jornal Público, onde estive 14 anos. Fui também colaboradora do Jornal de Negócios e da Lusa. Juntamente com a Helena Geraldes e a Joana Bourgard, ajudei em 2015 a fundar a Wilder, onde finalmente me sinto como “peixe na água”. Aqui escrevo sobre plantas, animais, espécies comuns e raras, descobertas científicas, projectos de conservação, políticas ambientais e pessoas apaixonadas por natureza. Aprendo e partilho algo novo todos os dias.

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