De novo no monte, numa das serras do Noroeste, ainda é Inverno. Grandes manchas da neve que há alguns dias deixou de cair vão-se extinguindo, hoje mais rapidamente, já que o sol vai brilhar todo o dia. Há muitos rastos de raposas sobre elas. Nos locais mais sombrios, pequenas poças de água mantêm-se cobertas por uma fina placa de gelo.
Encostei o todo-o-terreno numa curva da pista florestal onde esta intersecta um vale bem arborizado. Duas covas, grandes mas pouco profundas, talvez abertas aquando da construção da estrada, estão cheias de água e de vegetação que as naturalizou de uma forma perfeita.
Começo a procurar em todo o chão do perímetro, no estradão, nas suas bermas, na entrada e na saída do vale. Nada de assinalável. Na pista, o solo está seco e duro ou coberto por uma gravilha espessa, e fora dela, nas clareiras entre o arvoredo, essencialmente bétulas e pinheiros-silvestres, é mais húmido e mole mas encontra-se revestido de folhagem e de gramíneas enrijecidas pelas geadas que não deixam visíveis quaisquer pegadas de animais selvagens. Encruzilhadas como esta, em que um acesso aberto pelo homem atravessa uma zona de junção de dois vales, merecem especial atenção porque frequentemente são fronteiras de territórios de animais selvagens, muito visitadas e onde eles deixam bioassinaturas – marcas ou sinais como os dejectos – com que reclamam a posse do espaço. Decido dedicar uma parte da manhã a uma espera, escolhendo um «spot» sobre esta curva, na esperança de que algo aconteça, isto é, apareça.
Esta é uma actividade que não impõe solidão, antes pelo contrário. Caminhar acompanhado, em percursos mais longos, em espaços isolados ou por trilhos que envolvam riscos, é uma regra de ouro. Mas a máxima «mais vale só que mal acompanhado» neste caso também se aplica, significando má companhia alguém que não aguenta longos períodos de silêncio e de paciência, que não consiga alternar caminhadas, por vezes exigentes, com longas esperas tentando avistamentos ou escutas que a eles possam conduzir. Passear conversando ruidosamente, revela uma postura especialmente indicada para quem não pretende sentir nem ver vida selvagem por perto. Os bichos têm sentidos mais apurados. Evitar que nos sintam pelo cheiro, que nos vejam à distância, que nos ouçam, impõe que sejamos discretos nas cores e contrastes da roupa que vestimos e cautelosos com os cheiros que normalmente nos acompanham, com os movimentos que fazemos e com o ruído que geramos. Determo-nos num local com indícios de presença de animais selvagens, com um bom campo de visão e onde possamos permanecer dissimulados na paisagem, é sempre uma boa estratégia.
O tempo vai passando até que, por uma das bermas do estradão se aproxima um animal. É uma raposa, adulta, que já mais perto pára e se senta. Olha-me. Retoma o seu percurso desaparecendo na vegetação da outra berma logo a seguir. Escassos minutos depois, outra raposa igualmente bem vestida na sua espessa vestimenta de Inverno, mas de aspecto mais pesaroso. Também se imobiliza e também me vê, mas sem sobressaltos segue o trajecto da primeira. Mais tarde, comparando as fotografias das duas, as diferenças são apreciáveis. A segunda era um exemplar jovem, mais acastanhado e miúdo.
O tempo foi-se esgotando e a possibilidade de ver «algo maior», o maior prémio possível nestas serras do noroeste, também. Deixei o talude, na base de uma encosta densamente florestada e de onde foram chegando cantos de muitos passeriformes, para voltar ao carro e subir ao topo da Serra.
No cume, mais árido e agreste, bandos de petinhas caminham por entre o mato rasteiro. O vento é forte e gelado, quase insuportável e não existem pontos de refúgio. Meia hora depois, trespassado pelo frio, volto a descer, estacionando no mesmo local da mesma curva. Agora vou investir o que resta da tarde – nesta época do ano ainda são curtas – na procura e identificação das muitas aves que fui ouvindo enquanto estava «virado» para as raposas.
Chapins-reais, chapins-pretos, chapins-azuis. Melros e outros tordos. Verdilhões, cartaxos. Um búteo sobrevoa a zona. Várias estrelinhas-de-cabeça-listada – a mais pequena das nossas aves, com apenas nove centímetros de comprimento – movem-se por entre carquejas e tojos. Concentro-me a fotografá-las durante tanto tempo que a dada altura já quase me ignoram. Não param quietas e alguém que me veja à distância dirá que terei perdido algo importante.
Resta pouco tempo de sol, o que se pressente pela temperatura, rapidamente a descer. Regresso ao carro.
Mesmo junto à sua traseira, lá estava o que logo de manhã me atraiu a esta «curva da Serra». Um conspícuo dejecto de lobo salta à vista! Já tem algum tempo. Muito negro, só pêlo de grandes cerdas e vários pequenos fragmentos de ossos, uma escassa parte do que sobrou de um provável grande festim de javali.
Já a descer a pista de «regresso à civilização», olhando as estalactites de gelo que pendem sob as pedras dos taludes da berma e com o termómetro exterior indeciso entre o zero e o menos um graus, concluo que a «curva» é mesmo indicada para avistamentos. E que na primeira vez que lá estacionei o carro de manhã, foi precisamente sobre a bioassinatura que mais motivou as buscas do dia.