PUB

Ilustração: Fernando J. S. Correia

Fernando Correia fez um livro sobre as árvores de Alenquer para travar “cegueira botânica”

20.06.2025

Em Março, a Câmara Municipal de Alenquer disponibilizou para todos o “Guia das Árvores Autóctones de Alenquer” para combater a “cegueira botânica” e promover o orgulho na natureza local. A Wilder entrevistou o autor deste guia, Fernando J. S. Correia.

WILDER: Como descreve as várias etapas de criação deste livro?

Fernando J. S. Correia: Criar um guia de campo é o resultado de um longo trabalho de investigação em que é preciso selecionar o que é pertinente, correlacionar factos, deixando fermentar mentalmente as ideias. Tratar informação é, sem sombra de dúvidas, a parte mais trabalhosa mas, por outro lado, a mais fascinante. No processo, revisitas áreas do conhecimento científico que vais relembrar e atualizar e ainda te deparas com outras descobertas novas para ti e que alimentam o teu fascínio pelos organismos sobre os quais tentas aprender um pouco mais. Para mim, o mais difícil é saber quando parar, pois tudo me parece interessante. Confesso que o que atualmente ainda me satisfaz, em quase 40 nos de profissão, é o ato de compreender e “dissecar” as singularidades de cada espécie.  Findo este trabalho de investigação, posso iniciar a segunda parte da obra e criar o parque imagético que irá acompanhar cada texto. 

Fernando Correia no seu estúdio de trabalho. Foto: D.R.

Na verdade, a obra vai-se revelando aos poucos. O ideário que idealizamos, ao longo de todo o processo construtivo, ganha sempre novas dimensões e sofre severas mutações. Mesmo quando tenho o texto e as ilustrações finalizadas, inicia-se um novo desafio: o design do plano. Como e com que ilustrações conjugar os blocos de texto? Como distribuir estes elementos para criar sinergias e uma narrativa cuja retórica visual seja enfática? Este processo dinâmico é um verdadeiro exercício mental, pois temos que redimensionar ilustrações em função do espaço disponível, “sacrificar” texto original e sumarizar informações ou mesmo prescindir delas, criar ligações virtuais entre elementos para ajudar na leitura. O objectivo maior é manter ativo o interesse do leitor, de forma a que, virada a página, existam novos pontos de ancoragem visual para manter a narrativa viva e cativante, repetindo o processo, plano a plano, até à ultima página. Só depois penso na capa e contra-capa, ainda que até lá a minha mente já tenha viajado por um sem número de possibilidades. Diz-se que não se deve julgar um livro pela capa, mas a verdade é que o fazemos. Por isso mesmo, esta deve ser um dos elementos que mais nos deve preocupar. Ela é o “anzol” com que, num primeiro impacto, envolvemos o potencial leitor, num mar de outras tantas obras num qualquer expositor. Fazer um livro desta natureza passa por assumir muito mais do que um modelo editorial já estabelecido e pré-formatado. É antes a responsabilidade de conseguir despertar curiosidades e alimentar a fome insaciável por mais saber. 

W: Qual a importância da ilustração científica neste tipo de guias?

Fernando J. S. Correia: Uma ilustração científica é sempre 50% de estudo e investigação; 40% de exercício de competências técnicas; 8% de virtuosismo (uso da experiência acumulada para obter economia de esforço e economia visual compositiva) e 2% de inspiração. A criatividade está presente ao longo de todo o processo de criação, mesmo que trabalhemos com material que muitos outros já estudaram, interpretaram, publicaram e foi aceite pelos pares da academia científica. Inferimos também que, no processo criativo, impera sempre: o respeito integral pelo conhecimento científico vigente e empiricamente testado; a prioridade do exercício da razão e dos processos racionais e técnicos que, no mínimo, corroborem a plausibilidade biológica, ou outra; o relegar, para um lugar de menor importância dos processos de expressão emocional e/ou dos valores estéticos. 

Ilustração: Fernando J. S. Correia

Uma ilustração científica não é um exercício de ficção, puramente imaginativo, muito pelo contrário. É a tradução visual do que a ciência teorizou e colocou em evidencia como sendo a verdade atual. No Guia das Árvores Autóctones de Alenquer — que pode ser também um pequeno compêndio que resume as mais recentes atualizações e descobertas científicas sobre as 15 espécies em causa — as ilustrações têm a obrigação de acompanhar os requisitos que a ciência impõe: isenção e objetividade, precisão e rigor (absolutamente necessários para erradicar o erro e providenciar a economia visual), clareza e, claro, honestidade. Uma boa ilustração científica, mais do que esteticamente bela, é um documento científico gráfico, no qual se pode confiar e que, enquanto hipótese/ensaio visual, está de acordo e respeita o que hoje se conhece e a Ciência reconhece (podendo, de futuro, ser revista se o conhecimento científico mudar e assim o exigir). A ilustração científica, por ser um modelo ou arquétipo verdadeiramente representativo da espécie, suplanta o potencial da uma fotografia, cujo resultado é sempre uma exposição de um único espécime de uma população. Na verdade, o discurso visual tem que, obrigatoriamente, parear o discurso verbal escrito, para que a credibilidade nos conteúdos que a obra encerra em si, mantenham o expoente máximo no índice de confiança do leitor e trabalhem em conjunto, falando a uma só voz.

W: Qual foi a técnica que utilizou para estas ilustrações?

Fernando J. S. Correia: A maior parte das ilustrações científica que acompanham o Guia foram realizadas em ambiente digital, muito embora existam algumas que foram pintadas em aguarela e posteriormente tratadas digitalmente. Importa referir que nem todas as ilustrações que podemos encontrar neste livro foram feitas por mim e muitas delas são da autoria de vários colaboradores que regularmente compõem a minha equipa, trabalhando diretamente sob minha supervisão.

W: Como podemos contrariar a “cegueira botânica” e qual a importância de o conseguirmos?

Fernando J. S. Correia: A “cegueira botânica” – a aparente inaptidão do ser humano em não prestar a devida atenção às fitocomunidades que o rodeiam – é um problema percepcional realmente grave. E não se restringe só ao património florístico. De facto, podemos observar fenómenos similares de cegueira geológica (quando olhamos ao nosso redor vemos organismos, mas também “pedras”, cujo tipo de rochasa maioria de nós não consegue identificar, por exemplo), ou até de cegueira paleontológica, quando temos belos painéis/lajes de calcário ornamental no interior das nossas casas e somos incapazes de identificar cortes de invertebrados marinhos (como conchas de bivalves/gastrópodes), ou até belos moldes das conchas das amonites, em blocos de pedra calcária que formam muitos dos muros que separam propriedades, ou pavimentam as ruas em que todos os dias andamos. 

Ilustração: Fernando J. S. Correia

Ora estes fenómenos de “cegueira” centram-se na tendência humana em ignorar ou subestimar tudo aquilo que não mexe; em termos de interpretação cerebral são catalogados como ruído visual e descartados. No caso particular das plantas, constatamos que numa comunidade vegetal composta por muitas espécies diferentes, como todas elas são verdes, acabam por se tornar indistintas aos olhos dos não especialistas. Estamos perante um caso de invisibilidade botânica, em parte fisiologicamente forçado pelo nosso cérebro (que evolutivamente aprendeu a dar maior importância ao que, tal como nós, se movimenta) e, por outra parte, pelo agravar do envolvimento social, através de práticas culturais e pedagógicas que acabam por sobrevalorizar os animais. Este problema tem vindo a agravar-se nas últimas décadas, o que tem dificultado a compreensão pública para a, cada vez mais, premente necessidade de conservação das plantas. Ora se não se identificam e conhecem estas diferentes espécies acabamos por, instintivamente, minimizar a sua real importância (ou até as nulificar). A cegueira botânica é um paradigma atual que urge reverter. A solução passa por uma valorização e priorização das plantas, demonstrando que as plantas são seres fascinantes e incrivelmente úteis. Penso também que é uma ação que deve ser encetada, pelo menos, a dois níveis: o primeiro centra-se a nível da cultura escolar, desde a mais tenra idade, mas para isso é preciso preparar os docentes para essa responsabilidade; o segundo, é o que se pode fazer no presente, com ações que permitam a reavaliação da perceção ecológica vigente — e este guia, centrado apenas nas plantas autóctones, demonstrativo da sua utilidade e capaz de fascinar também pela componente visual (que nos permite olhar para as plantas com outros olhos e uma outra atenção), é um exemplo de uma ferramenta com potencial para combater este paradigma e para finalmente olharmos para as plantas como elas realmente merecem.

W: O que mais gozo lhe deu fazer neste guia?

Fernando J. S. Correia: Juntar as peças, como se fossem “legos”, e montar um todo coeso e sustentado, legível, cativante e envolvente, cuja informação visual e descritiva sejam potencialmente memoráveis. Para isso, texto e ilustrações têm que ser mutuamente prestativas, isto é, catapultar-se um ao outro. Para se conseguir esse equilíbrio e sinergia, é preciso devotar especial atenção à forma e estrutura da narrativa. É preciso oferecer o conhecimento que a ciência nos traz, sem parecer uma lição ou um texto para eruditos. Uma das minhas maiores preocupações é sempre a de, mais do que mostrar o Saber, procurar transmiti-lo com eficiência e efetividade. Sem desrespeitar a Ciência, as ilustrações científicas criadas para ilustrar a obra seguem o mesmo princípio e regra, justificando a sua presença quando e onde se torna necessário complementar o discurso, para ficar ainda mais leve. Têm assim como função o sintetizar graficamente mais conhecimento, com o qual alimentemos o nosso corpo de saber — com um substrato imagético mais “palatável”, adoçado pela estética da Arte. Depois, e não menos importante, torna-se necessário estruturar tudo isso num produto que tenha coerência e faça sentido de uma ponta à outra, para, num todo, poder satisfazer diferentes níveis de exigências e conhecimentos intrínsecos a cada leitor — o qual, não podemos esquecer, são indivíduos com diferentes aprendizagens, curiosidades e interesses, pois a nossa sociedade é tudo menos um conjunto homogéneo de pessoas. Sempre fui apaixonado por “influencers” no campo da comunicação de ciência, mais propriamente, da divulgação científica, que também desenhassem — o primeiro foi o incontornável Félix Rodríguez de la Fuente (1928–1980; série documental El Hombre y la Tierra), que embora não fosse um ilustrador sistemático, tinha inúmeros cadernos de campo com esboços e notas ilustradas das suas observações da fauna peninsular, dos seus comportamentos e até da ecologia/habitats. Mais tarde, conheci o trabalho de Buffon e a sua “História Natural” (séc. XVIII), as fito-comunidades nos registos paisagísticos de Humboldt e as impressionantes aves, coligidas no elephant folio de Audubon (séc. XIX). Já no século XX, deslumbrei-me com Ernest Haeckel e suas impressionantes estampas zoológicas (algumas mais artísticas, do que científicas, no estilo art deco) e, claro, o magistral trabalho do ornitólogo norte-americano Roger Tory Peterson, responsável por popularizar os “field guides” (que ele mesmo escrevia e desenhava) e ajudar a catapultar o fenómeno dos modernos guias de campo, a nível mundial. É óbvio que me revejo e identifico como um biólogo especializado em comunicação de ciência, no campo da ilustração científica, mas faço por ser mais do que a mera soma das partes. Considero-me um naturalista-ilustrador, incorporando uma tradição que remonta ao século XVIII, onde o estudo da natureza era mais unificado e transdisciplinar.

W: O que gostaria de transmitir a quem ler este livro?

Fernando J. S. Correia: Que a Natureza se transcende além dela própria, que tudo está ligado a tudo, sem ser por um acaso ou um capricho de uma “ordem natural” — o que existe tem um propósito, uma função absolutamente essencial no delicado equilíbrio que prevalece. A subtração de uma espécie, pelo fenómeno da extinção, representa uma perda imensurável e insubstituível nesse equilíbrio natural e obviamente cria uma lacuna, que a natureza não preenche com algo novo e no imediato (auto-regeneração), apenas remenda ou emenda.

Ilustração: Fernando J. S. Correia

Ora qualquer mecanismo constantemente agredido e que constantemente está a ser remediado, está predestinado a deixar de ser funcionalmente viável e, a qualquer momento, irá parar por multifalência orgânica. A Humanidade desempenha um papel, no mínimo, acelerador para este desfecho. Mas mesmo considerando esse desfecho fatalista, temos a obrigação de não abandonar a luta e, pelo menos, continuar a luta da conservação para mitigar os efeitos. Talvez uma das soluções passe por sensibilizar melhor as pessoas, apelando a um “nacionalismo” ecológico: conservar e defender o que é “nosso”, naturalmente indígena, nativo ou autóctone. Se conseguirmos criar esse sentimento de familiaridade e sentido de pertença, conseguiremos alcançar um nível de penetração, na matriz societal, maior do que o conseguido recorrendo à crueza dos dados e estudo científicos puros, que factualmente apenas nos dão a conhecer a evidencia e aprimoram a previsibilidade. Talvez assim consigamos tornar as pessoas mais pró-ativas nas suas ações a favor da preservação da biosfera. Se as pessoas descobrirem que as nossas árvores nativas são os Gigantes Verdes, um dos guardiões-mor do equilíbrio dos ecossistemas, promotoras da biodiversidade, por um lado, e promotoras do bem-estar humano (espiritual, medicinal, etc.), por outro, e que as duas realidades conseguem coexistir, penso que conseguiremos atingir essa meta da mitigação. E é isso que queria deixar como legado em outros Guias que já publiquei e também nesta obra sobre árvores autóctones. Alenquer tomou a dianteira, mostrou a preocupação, o problema e um caminho para uma solução, e a pergunta que se segue é: e quem o secundará? Mais do que nunca, a união faz a força…


Pode consultar o livro aqui .

Este é um livro sobre as árvores autóctones de Alenquer, sobre a sua importância para o equilíbrio do ecossistema e ajuda no travão às alterações climáticas. Com ilustrações e texto de Fernando J. S. Correia, este é um guia que nos fala do amieiro-ibérico, da azinheira, borrazeira-preta, carvalho-português, castanheiro, choupo-branco, freixo, loureiro, medronheiro, tamarineira, salgueiro-branco, sobreiro, ulmeiro, zambujeiro e da zelha. Segundo Paulo Marques, da Câmara Municipal de Alenquer, “a comunidade local não valoriza a árvore, não existe como sucede noutros países um respeito por aqueles gigantes verdes, porventura centenários, nem conhece o seu valor, nem faz ideia do que foi a floresta autóctone desta região. Assim, este guia pretende identificar esse património, dá-lo a conhecer à comunidade, valoriza-lo e protege-lo, procurando ainda incutir na população um sentimento de orgulho e pertença ao seu património natural”.


Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.

Don't Miss