A correspondente da Wilder Fernanda Gamito teve a sorte (e a surpresa) de encontrar na Serra do Açor um azevinho (Ilex aquifolium), espécie que se tornou difícil de encontrar em estado espontâneo na natureza. Considerou-o um “raro presente de Natal”.
Com idêntica persistência, a mão humana esculpiu, primorosamente, uma paisagem de vales escarpados e encostas de xisto e delapidou a natureza primitiva da Serra do Açor. Uma das vítimas da pressão sobre o habitat original e de tradições milenares que o tinham como planta talismã é o azevinho (Ilex aquifolium), uma espécie difícil de encontrar no seu estado espontâneo. Dar com ele à beira do caminho foi assim como receber um raro presente de Natal.
Perde-se na noite dos tempos a memória da floresta natural das zonas montanhosas de Portugal depois da última glaciação: bosques mistos de árvores caducifólias, maioritariamente de carvalhos e castanheiros, a chamada Fagosilva. Na sua sombra, cresciam medronheiros, loureiros, azereiros e aveleiras, o aderno e o azevinho. O corte de árvores, a agricultura, a pastorícia e os incêndios terão introduzido alterações neste coberto vegetal logo desde o Neolítico. O crescimento das povoações humanas durante a Idade Média e a necessidade de madeira para as viagens marítimas no Renascimento levaram depois ao abate progressivo de mais e mais árvores, reduzindo drasticamente os carvalhais. O reflorestamento do país com pinheiro-bravo no século XIX e o plantio de eucaliptos para produção de pasta de papel a partir da década de 50 do século XX substituíram definitivamente a floresta autóctone na maior parte do território, não restando dela mais do que pequenas manchas fragmentadas no centro e norte do país.
Piodão
À primeira vista, o Açor é uma serra meio despida nos cumes mais altos e encostas abruptas. A meia altura, a monocultura de eucalipto alterna com as cicatrizes de incêndios recorrentes. A estrada desce em curvas apertadas até ao vale profundo, onde a Ribeira de Piodão corre ruidosa nas represas. Os verdes socalcos ou “quelhadas” que rodeiam a aldeia descem em anfiteatro até à linha de água, salpicados de oliveiras e árvores de fruto.
“Já não se cultiva nada nos socalcos”, dizem-nos. Muito por culpa da saída dos filhos da terra, do envelhecimento da população e, porventura, da transferência do foco das atividades económicas tradicionais para o turismo. “Agora, só lá pastam ovelhas; noutro tempo, havia milho, batatas, feijão, couves, nabos e um pouco de tudo para consumo da casa”. Atualmente, menos de uma centena de pessoas vive de forma permanente em Piodão. Há pouco mais de 70 anos chegaram a ser mais de 1000 os habitantes da aldeia-presépio.
Sob a luz do meio-dia, a vista panorâmica é encantadora, mas ainda assim não evita que pensemos na vida difícil dos primeiros habitantes que escolheram este local para se instalarem, transferindo-se para aqui, não se sabe ao certo porquê, do primitivo “Casal de Piodam” que já existiria no século XII, num vale próximo. Nem a harmonia do pequeno conjunto urbano de xisto negro sossega as ideias: a aldeia mais turística da Serra do Açor tem o seu quê de museu, outro tanto de cenário de vivências passadas, de que desconfiámos à chegada: logo ao descer a serra, na primeira curva em que se descobre Piodão, lá estavam as palavras de Miguel Torga, em jeito de aviso, gravadas num feio bloco de cimento: “(…) vim aqui despedir-me do Portugal primevo…”
Toda a paisagem em redor – a natural e a humanizada – parece ser apenas uma lembrança do que já foi…
Percurso Piodão – Foz d´Égua
Ainda magicando no que terá levado estes construtores ancestrais a criar o seu sustento num sítio que recebe menos de quatro horas de Sol por dia no Inverno, aproveitamos a luz que nos resta e seguimos o percurso pedestre até Foz d´Égua, ponto de encontro da Ribeira de Piodão com a Ribeira de Chãs. Ontem foi Dia de Natal e as fantasias dos presépios laboriosos junto às levadas da aldeia ainda nos acompanham. Há notícia da existência do espinhoso símbolo de Natal, eternamente verde e iluminado de vermelho vivo, a crescer selvagem, mas noutra freguesia, na Mata da Margaraça, área especial da Paisagem Protegida da Serra do Açor. Não esperamos encontrá-lo por aqui.
Embora a espécie esteja classificada como “Pouco Preocupante” no que diz respeito ao risco de extinção, o azevinho continua a escassear, sobretudo devido à destruição do seu habitat natural, podendo mesmo já estar extinto no Nordeste Transmontano. Foi igualmente vítima da sua popularidade como planta protetora desde os tempos de celtas e romanos, símbolo pagão de cultos das árvores e da natureza prontamente reinterpretado pelo Cristianismo e intensamente colhido até ao presente. Em Portugal continental, esta é, contudo, uma espécie protegida por lei (Dec.-Lei 423/89), sendo proibido o seu arranque, corte total ou parcial, transporte e venda.
Atapetado por folhas de castanheiro molhadas, alternando com casca e ramos de eucalipto, o caminho que tomámos até Foz d´Égua ressuma água das vertentes de xisto, cobertas por líquenes, fetos e frondosos musgos gotejantes, escondendo e desvendando várias espécies de cogumelos coloridos, dos quais se destacam os pequenos chapéus com manchas cor-de-vinho, do género Russula. Há jovens sobreiros e alguns carvalhos adultos, mas a sombra mais alta desce de pinheiros-bravos e eucaliptos. Fundem-se na vegetação densa de fetos, urzes e giestas muitas ruínas de antiquíssimas labutas: moinhos, abrigos de pastores, palheiros ou mesmo habitações dispersas.
Na última curva sombria, quando se avistam já as primeiras casas da pitoresca Foz d´Égua, a surpresa: um azevinho com quase cinco metros de altura, à beira do caminho… ou melhor, uma “azevinha”, pois, nesta espécie dióica, há plantas femininas e masculinas e só a femininas produzem as cobiçadas bagas vermelhas. Tem folhas onduladas e espinhosas até metade da sua altura, numa estratégia eficaz para se defender de herbívoros vorazes. Não é por acaso que também é conhecido pelos nomes comuns de pica-folha, visqueiro, zebro ou pica-rato. Daí para cima, a maioria das folhas, mais velhas, são ovais e lisas, muito lustrosas. Um espécime assim tão alto está aqui há várias décadas ou, quem sabe, terá já um século de idade, pois o seu crecimento é muito lento. Encontrá-lo tão perto do caminho e tão intacto, protetor e protegido, parece coisa de conto de Natal.
E se este é mesmo o tempo da esperança, resta-nos reconhecer que a vontade de conservar a Natureza e os seus tesouros está a crescer lentamente, como os azevinhos na Serra do Açor.