A leitora da Wilder Fernanda Gamito partiu à descoberta da Costa Vicentina, que muitos consideram a mais bela e mais bem preservada zona costeira do Sul da Europa.
Não há que enganar. O cheiro intenso a esteva já entra pela janela do carro, deixando adivinhar a proximidade do mar. Estamos na Costa Vicentina que começa onde o Alentejo acaba, em Odeceixe, e vai até ao Burgau, contornando o Cabo de S. Vicente, o extremo Sudoeste do continente europeu.
Os perfumes selvagens da esteva, do tomilho do Algarve, da perpétua-das- areias, do funcho-marítimo e de tantas outras espécies hão-de acompanhar-nos a tempo inteiro nos dias que se sucedem entre arribas, dunas e falésias deste planalto costeiro quase ininterrupto, só cortado por barrancos, por onde correm, há milénios, as ribeiras e os arenitos que originaram as formosas praias.
Juntamente com o Sudoeste Alentejano, esta é a maior extensão de costa portuguesa sujeita a protecção – o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina.
No que respeita à biodiversidade, será talvez uma das mais interessantes áreas protegidas nacionais.
Na Flora estão identificadas mais de 750 espécies, das quais cerca de uma centena são endémicas, raras ou localizadas. O clima mediterrânico, mas de forte influência marítima-atlântica, e a Nortada dominante moldaram o coberto vegetal numa suave ondulação de matos rasteiros e associações florísticas inusitadas, em que cada espécie parece tirar partido de toda a vizinhança.
Na Praia do Amado seguimos caminho para Norte, sempre à vista do mar.
Como um enigma, uma letra do alfabeto em metal envelhecido destaca-se na paisagem. Este “J” gigante faz parte do percurso interpretativo do Pontal da Carrapateira, “Museu Vivo” que integra o pequeno Museu comunitário do Mar e da Terra da Carrapateira.
A letra assinala assim o ponto em que nos encontramos neste percurso circular, que vai de A (Museu da Carrapateira) a K (Praia do Amado), mas não desvenda as surpresas que nos esperam nos pontos seguintes.
Desafio aceite, soletramos então, sem pressas, o abecedário ao contrário, para descobrir que esta ponta de rocha, com 150 milhões de anos, nos seus recortes fantásticos em tons claros e escuros – do suave calcário, aos vermelhos e laranjas da argila, aos xistos negros e cinzentos –, é olhada com assombro, desde tempos muito antigos. Há vestígios pré-históricos de acampamentos sazonais, numa baía de concheiros, e de um povoado islâmico de pescadores do séc. XII, num penhasco, marcas de fenícios e romanos, histórias de naufrágios e tesouros por resgatar do fundo do mar.
Estes são sinais da tenacidade humana que, contudo, sempre se harmonizou com o ambiente rigoroso. Testemunha disso mesmo é o portinho de pesca artesanal da Zimbreirinha (agora desactivado), onde se “fundeavam” as embarcações nas paredes de rocha abrigadas a Sul, com a ajuda de um guincho e de plataformas de madeira e cana, aproveitando o diminuto abrigo oferecido pela Natureza.
A duas letras do fim, saímos do percurso. É difícil resistir ao apelo da escadaria panorâmica sobre a espetacular Praia da Bordeira, um areal imenso de 3km, atravessado pelo estuário de uma ribeira, onde será possível observar lontras e surfistas em trânsito, porventura em dias alternados.
Já nos “medos” da Amoreira, junto à praia com o mesmo nome e à Ribeira de Aljezur, os campos dunares enchem-se de narcisos-das-areias e cardos-marítimos em plena floração.
Ao lado, vão secando os capítulos rosa claro das armeria marítima, compondo jardins selvagens que reclamam justamente para esta costa o título de mais bela e mais bem preservada zona costeira do Sul da Europa, um autêntico “alfobre de assuntos pictóricos”, como lhe chamou o algarvio Teixeira Gomes.
Prosseguindo para Norte, nos tais barrancos que interrompem o contínuo das falésias, agora de xistos e grauvaques, sucedem-se praias mais ou menos arenosas ou de calhau rolado, onde se chega apenas por carreiros inseguros a pique ou, com sorte, por escadarias abruptas de várias centenas de degraus.
Aqui, como no Pontal da Carrapateira, os caminhos cruzam-se, muitas vezes, com os trilhos da “Rota Vicentina”, palmilhada por caminheiros de todo o mundo, em busca de deslumbramento. Carreagem, Vale dos Homens, Barradinha e Samouqueira são nomes de lugares agrestes mas tónicos, onde, na maré baixa, se revelam mundos escondidos nas rochas e poças de maré, caleidoscópios de anémonas, lapas, caramujos e ouriços-do-mar, num cenário onírico.
Como o perfume da esteva, também o sentimento de finisterra nos acompanha nestas paragens. Quando se juntam o imenso oceano pela frente, o Sol na linha do horizonte e uma luz filtrada pela bruma da tarde carregada de sal, que nos prega partidas, temos a ilusão de estar a uma pequeno salto do espaço sideral… não fossem o sinal persistente de telemóvel ou os campos cultivados de batata-doce e amendoim logo atrás, a relembrarem o verdadeiro carácter desta terra: rara, selvagem e humanizada.
Por quanto tempo mais? É a pergunta que fazem, receosos, todos os que se deixam conquistar por ela. Tal como noutros debates sobre ambiente, “é demasiado tarde para se ser pessimista”: há um turismo cada vez mais consciente da sua responsabilidade; um esforço conservacionista crescente das entidades que gerem o território e de pequenas empresas de turismo de natureza; a preservação e a limpeza dos sítios de visitação são admiráveis; os habitantes de sempre e os visitantes apostam nos produtos da terra e da tradição e na agricultura de pequena escala e familiar (no oposto ao “mar” de plástico e pesticidas das estufas do Sudoeste Alentejano); a fúria imobiliária regista avanços mas também recuos; a esperança renasce.
Com o cheiro a esteva colado à pele, aos cabelos e às memórias, queremos fazer parte desta paisagem para sempre e reclamamos a Costa Vicentina, assim mesmo como ela é, património natural e cultural, que é como quem diz: um bocado selvagem, um bocadinho nossa.
Agora é a sua vez.
Fernanda Gamito deixa estas sugestões para conhecer melhor a Costa Vicentina:
www.cm-aljezur.pt
pontaldacarrapateira.com
www.terrasdemouros.pt
pt.rotavicentina.com
alentour.pt