Para levantarmos o véu que cobre este mundo vasto e ainda tão desconhecido, falámos com três investigadoras que desde há muito estudam este tema. Cristina Cruz, Teresa Dias e Silvana Munzi, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL), ajudam-nos a perceber melhor quais são os inúmeros organismos que vivem no solo e como os podemos proteger.
Todos os dias ao sairmos para a rua, entramos em contacto com o solo. E todavia, sabemos muito pouco sobre este “pilar da sustentabilidade da vida na Terra”, como lhe chamam Cristina Cruz, Teresa Dias e Silvana Munzi, três cientistas do cE3c – Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais, da FCUL, que estudam este tema há muitos anos.
Para começar, o que é o solo? Trata-se de um sistema complexo e dinâmico composto por argila, limo e areia e matéria orgânica, água e ar, e uma vasta diversidade de seres, descrevem as investigadoras. Forma-se a partir da erosão da rocha que está por baixo dele, por ação do tempo, mas também do clima, da água e de inúmeros organismos vivos. Este submundo escuro cheio de vida, em especial na camada superior, alberga criaturas invisíveis como bactérias, fungos, algas, e outros, mas também outras que nos são familiares e alimentam a nossa imaginação, como plantas, formigas, minhocas, bichos de conta, coelhos, perdizes, ou mesmo toupeiras.
Podemos também pensar no solo como um “tapete mágico” que purifica o ar e a água, sequestra carbono, transforma produtos e faz crescer a comida. “Esta magia do solo proporciona-nos segurança alimentar, evita migrações e promove a paz”, explicam as investigadoras.
Por outro lado, o solo é igualmente “um grande reservatório da biodiversidade da Terra”. Nele habitam mais de metade das espécies que conhecemos, incluindo “90% dos fungos, 85% das plantas e mais de 50% das bactérias, tornando-o o habitat mais rico em espécies do mundo.”
Todas estas criaturas, desde os microrganismos às que podem ser observadas sem a ajuda de um microscópio, desempenham “papéis cruciais no ecossistema solo”, pois “contribuem para a fertilidade, para o arejamento e ainda para a reciclagem de nutrientes.” Muitas são também fundamentais para a fixação de carbono e têm por isso um papel importante no combate às alterações climáticas. Ainda assim, a esmagadora maioria destes seres estão ainda por descrever: “Até hoje, só fomos capazes de dar nomes a 1% do que está no solo”, explicam as investigadoras.
Bactérias, fungos e algas
Entre todas estas criaturas, as bactérias são as mais abundantes no solo. Formadas apenas por uma célula, surgiram na Terra milhares de milhões de anos antes de outros seres vivos, e as suas formas variam entre esferas, bastonetes ou espirais. “Os seus metabolismos desafiam a nossa imaginação de tão diversos que são! Esta diversidade metabólica torna-as adaptáveis aos mais diferentes ambientes, e é uma das razões pelas quais encontramos bactérias em todos os ambientes do planeta, desde fontes termais e oceânicas profundas até à atmosfera e à neve ártica”, notam.
Por outro lado, estes seres microscópicos prestam importantes serviços. Existem por exemplo bactérias que se ligam às raízes das plantas e as ajudam a fixar o azoto, um nutriente fundamental para o crescimento vegetal e de todos os organismos vivos. Outras ajudam na decomposição de matéria orgânica complexa em matéria orgânica mais simples ou inorgânica, quer estejam perto ou longe das raízes das plantas.
Já os fungos, “um grupo altamente diversificado de organismos, que abrange uma ampla gama de formas de vida”, são igualmente cruciais para a biodiversidade e saúde dos solos. No caso dos fungos do solo, costumamos ver apenas os cogumelos, uma pequena parte visível ligada à sua reprodução. E no entanto, por baixo da terra estes seres vivos que têm o seu reino próprio – o reino Fungi – têm outra parte fundamental: o micélio, formado por filamentos muitíssimo finos chamados de hifas, que cria uma teia que liga, suporta ou interage com todos as criaturas do solo. “Muitos fungos são importantes para a decomposição de troncos, raízes e outra matéria morta, para a nutrição e proteção das plantas e ainda para a regulação das populações de bactérias, nemátodos e outros”, enumera a equipa.
As algas, que estamos habituados a ver nos lagos e lagoas, também existem no solo, onde são criaturas valiosas. Quase sempre invisíveis a olho nu quando estão isoladas, podemos vê-las quando formam as crostas do solo – matas de algas – ou os líquenes, que são associações entre algas e fungos. “Estas estruturas são essenciais nos estádios iniciais da formação do solo, onde funcionam como os produtores primários, ou seja, como fixadores de carbono.”
Neste tapete que pisamos todos os dias vivem ainda outras criaturas como os vírus e os protistas, que incluem amebas e ciliados. São grupos fascinantes, mas ainda pouco estudados e conhecidos.
Nemátodos, ácaros e colêmbolos
Entre muitas outras criaturas, no solo vivem os “animais” mais abundantes do mundo: os nemátodos, cujo nome significa “semelhante a um fio”, o que descreve o seu formato corporal fino e não segmentado. Milimétricos e omnipresentes nos sedimentos aquáticos, glaciares e solos em todo o mundo, representam “cerca de 80% de todos os animais da Terra”. Hoje em dia, os cientistas recorrem à identificação das diferentes comunidades de nemátodos para medir a qualidade dos solos.
Da mesma forma, os ácaros são muitíssimo pequenos, medindo um máximo de dois milímetros. Compondo uma subclasse do grupo dos aracnídeos, são extremamente diversos: há mais de 20.000 espécies de ácaros descritas por cientistas, mas estes calculam que mais de 80.000 espécies estão ainda por conhecer. Estes seres minúsculos são também dos mais abundantes nos ecossistemas do solo, onde podem chegar a 100.000 por cada metro quadrado.
Tal como os ácaros, os colêmbolos (reunidos na classe Collembola) são microartrópodes. “Têm apenas alguns milímetros de tamanho e são comumente chamados de colêmbolos (e de ‘springtails’ em inglês) por causa de um órgão de salto bifurcado chamado furca, que os ajuda a pular para evitarem predadores.”
Muitas destas criaturas, desde as que não conseguimos ver à vista desarmada até às que medem poucos milímetros, relacionam-se com as plantas e animais que estão à superfície. Como parasitas, por exemplo. Mas além disso relacionam-se entre si numa vasta cadeia alimentar contribuindo para a formação de mais solo. Muitos ácaros e colêmbolos do solo são conhecidos por “pastarem” nos fungos – fungívoros – estimulando o crescimento e atividade destes últimos e a reciclagem de nutrientes, e aumentando assim a decomposição da manta morta. Já as bactérias, que são a base da cadeia alimentar, são um alimento importante para muitos nemátodos, que por sua vez são “caçados” por várias espécies de ácaros, que alimentam muitas aves e presas de aves. Estas últimas estão no topo desta cadeia alimentar e servem como indicador importante da qualidade dos solos, indicam as três investigadoras.
E por fim, os engenheiros de ecossistemas
Entre os muitos habitantes invertebrados do solo, podemos encontrar também besouros, formigas e térmitas – estas últimas mais presentes nos trópicos – e ainda minhocas. Todos desempenham funções na manutenção e saúde deste tapete mágico sob os nossos pés. As formigas, por exemplo, são importantes predadores, enquanto que as térmitas ajudam a digerir a celulose das espécies vegetais e a reciclar os nutrientes orgânicos.
Quanto às minhocas, tal como as térmitas e formigas, são apelidadas de “engenheiros de ecossistemas” do solo. A presença destes anelídeos é muitas vezes associada à existência de um solo fértil para a agricultura. Muitas contribuem para que a matéria vegetal se volte a transformar em terra, alimentando-se de folhas secas e de outros detritos ou transportando-os para as camadas mais inferiores, através das galerias que escavam.
O que podemos fazer…
De que forma podemos contribuir para a conservação destas vastas comunidades tão diversas? Cristina Cruz, Teresa Dias e Silvana Munzi avançam alguns conselhos que todos podemos aplicar na gestão de um espaço verde:
– Cobrir o solo com vegetação, mas tendo atenção às plantas escolhidas. “Devemos ter o compromisso de cobrir o solo com espécies que gastem a menor quantidade de água possível, que sejam autóctones ou adaptadas ao stress hídrico”, sublinham as três investigadoras.
– Não mobilizar o solo frequentemente, especialmente em profundidade. Por exemplo, em vez de arar a terra, fazer pequenas covas para semear ou plantar.
– Fazer rotação de culturas para evitar o desequilíbrio das populações. Plantas a ter em conta são as leguminosas e também a batata doce, por exemplo, importantes para a fixação de azoto no solo.
– Reduzir a utilização de pesticidas e herbicidas.
– Incrementar a matéria orgânica do solo. Por exemplo, deixar sempre uma porção de folhas secas ou de outros ingredientes da manta morta, em vez de varrer tudo e deixar o jardim ou outros espaços verdes limpos e imaculados.
… e que medidas políticas se podem tomar
Existem ainda várias medidas que dependem do poder local ou do governo:
– Aumentar a literacia sobre o solo, tendo em consideração a relação dos diferentes públicos com este. Desde logo, “no espaço rural seria muito importante que os agricultores estivessem alertados para o valor da biodiversidade do solo e para a sua relevância para o funcionamento dos agro e ecossistemas”, sublinham as investigadoras.
– Reconsiderar a relação que todos nós temos com o solo, uma vez que, tal como o ar e a água, aquele é um elemento vital para a nossa sobrevivência. “A forma como encaramos e gerimos a nossa relação com o solo é muito distinta. Água e ar são gratuitos e para todos, mas este não!”.
– No que respeita ao solo urbano, é importante reconectar os cidadãos com este elemento, “pois não se pode proteger o que não se conhece”, salientam. Para isso, tanto os jardins como as hortas urbanas podem ser extremamente importantes.
– A nível da gestão do solo, definir aquilo a que a Comissão Europeia chama de “distritos de solo”. Ou seja, avaliar a funcionalidade de cada solo segundo a sua utilidade e os serviços de ecossistema que deverá prestar, definindo as melhores práticas para cada situação, e monitorizar se aquelas estão a ser aplicadas.
– Consultar os agricultores e outros atores que lidam com o solo sobre os efeitos práticos das novas ferramentas e métodos desenvolvidos pelos cientistas. “É bom que a ciência acompanhe os efeitos daquilo que vai produzindo no terreno.”
A série “Jardins para a Vida Silvestre” é uma parceria entre a Fundação Gulbenkian e a Wilder, com visitas e conteúdos sobre como tornar os nossos jardins, parques e terrenos, tanto no interior das cidades como fora, em espaços mais acolhedores para vida silvestre.
A SPEA-Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves patrocina a secção “Seja um Naturalista”.