Fotos: Tiago de Zoeten

Resgatados da extinção: Quatro caracóis da Madeira estão a ser salvos de desaparecer para sempre

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Nas histórias de encantar – e em muitas outras – há sempre alguém que se vê em maus lençóis, ameaçado por inimigos, por vezes em risco de desaparecer, mas acaba por ultrapassar as adversidades e viver “feliz para sempre”.

Esta é a história de quatro espécies de pequenos caracóis das ilhas Desertas, contada em cinco capítulos. Graças a uma concertação internacional de esforços, e depois de viajarem de avião para uma outra ilha no Atlântico, espera-se que pelo menos a maioria consiga escapar à extinção dada como certa.

Regressados dos mortos

Com efeito, desde o século XIX que os cientistas estavam convencidos de que estas quatro espécies de caracóis tinham desaparecido de vez do único local onde já tinham sido vistas, nas ilhas Desertas – um grupo de três ilhas da Região Autónoma da Madeira. O regresso destes pequenos moluscos ao mundo dos vivos aconteceu nos últimos 12 anos, mais de um século depois do último sinal da sua presença, em 1878, depois de terem sido descritos para a Ciência.

A redescoberta deve-se ao trabalho do malacólogo Dinarte Teixeira e do vigilante da natureza Isamberto Silva, ambos ligados ao Instituto das Florestas e Conservação da Natureza, tutelado pelo governo madeirense. Ao longo de mais de uma década, foi possível identificar uma população para cada uma das espécies em apreço, explicou Dinarte Teixeira à Wilder.

Assim, o primeiro caracol reencontrado foi o Atlantica calathoides, em 2008; seguiu-se, em 2012, o Geomitra grabhami. As outras duas espécies foram redescobertas no âmbito do projecto LIFE Recover Natura, cofinanciado por fundos europeus, que recuperou habitats e espécies terrestres em vários locais do arquipélago, incluindo as Desertas: o Geomitra coronula foi reencontrado em 2013 e o Discula lyelliana em 2018.

Mas apesar das boas notícias, o futuro destas espécies não parecia risonho: “São todas extremamente raras, cada uma com apenas uma única população conhecida, com menos de 50 indivíduos, e ocorrendo num microhabitat inferior a 100 metros quadrados”, descreve o malacólogo madeirense.

Face ao pequeno número de sobreviventes, o caminho para a extinção continuava a ser certo.

Vítimas de predadores ferozes

Aliás, não seria um caso único nas Desertas, onde se continuam a sentir os efeitos das tentativas de colonização humana. O impacto dos animais introduzidos no ecossistema, incluindo para muitas espécies de moluscos terrestres que aí ocorrem, tem sido “substancial”.

Entre as principais ameaças estão as cabras que se mantêm à solta, pois “são responsáveis pelo desaparecimento de grande parte do coberto vegetal destas ilhas, diminuindo o habitat disponível para os caracóis e restringindo-os a pequenas bolsas de refúgio.”

Igualmente problemáticos são os murganhos (Mus musculos), pequenos roedores com um comprimento máximo de dez centímetros, que são na verdade “predadores ferozes dos caracóis”. Não os utilizam como alimento, mas “maioritariamente como fonte de água numa área onde esta é escassa”, concluíram os investigadores que têm estudado a biodiversidade do subarquipélago.

“As Desertas são um local árido e sem água potável, pelo que os caracóis são um alvo preferencial deste voraz predador. O impacte nas populações é devastador, pois incidem geralmente sobre os espécimes juvenis, os quais possuem uma concha mais frágil e fácil de quebras”, aponta Dinarte Teixeira. “Nesse sentido, condicionam de forma quase irreversível o balanço geracional das populações existentes.”

Perante este enquadramento nada lisongeiro, o futuro dos quatro caracóis recém- redescobertos parecia bastante incerto. Mas foi então que várias entidades alinharam esforços para contrariar o destino.

União para um resgate urgente (e complexo)

Tudo começou com a atribuição de uma bolsa da União Internacional para a Conservação da Natureza, destinada ao grupo de especialistas em invertebrados das áreas insulares do Atlântico Médio (IUCN SSC MAIISG) – que incluem as Canárias, os Açores e a Madeira, entre outros arquipélagos e ilhas.

Este grupo de cientistas, em conjunto com três parceiros internacionais – o Zoo de Chester, a Sociedade Zoológica de Bristol e a organização Mossy Earth – juntaram-se então ao Instituto das Florestas e da Conservação da Natureza da Madeira, enquanto parceiro local. O objectivo foi “implementar o projecto de resgate urgente das espécies de moluscos terrestres das ilhas Desertas”, para depois tentar a sua reprodução em cativeiro e reintrodução nos locais de origem.

A operação de resgate realizou-se em duas expedições à ilha da Deserta Grande, com membros do instituto madeirense e da Mossy Earth – uma organização que desenvolve projetos de conservação e rewilding, incluindo vários em Portugal.

A primeira expedição aconteceu em Maio passado, quando o grupo conseguiu recolher 80 caracóis da espécie Geomitra grabhami e outros 38 caracóis da espécie Discula lyelliana. Passados seis meses, em Novembro, uma nova deslocação à ilha permitiu o resgate de 37 caracóis de Atlantica calathoides. Mas por ainda não se terem encontrado caracóis suficientes, ficaram a faltar os “elementos fundadores de Geomitra coronula“, adianta o especialista.

A equipa vai fazer uma nova tentativa no próximo mês, em Março. Para já, as possibilidades de sucesso quanto a esta operação de resgate são incertas, uma vez que é necessário reunir pelo menos 30 caracóis para a reprodução em cativeiro.

O problema é que as quatro espécies deste projecto são muito raras, “o que torna muito desafiante a sua localização”, e são também “muito conspícuas”, ficando “quase ‘invisíveis’ no terreno”. Além do mais, estas acções de resgate requerem uma operação logística complexa, com “a deslocação por barco até à Deserta Grande e, já nesta ilha, a deslocação a pé ou com a ajuda de uma embarcação semi-rígida”.

E muitas vezes, é preciso alcançar zonas onde não é fácil chegar. “São áreas declivosas, com terreno instável e de difícil acesso, e em alguns casos é necessário aceder às populações com a ajuda de cordas”, nota Dinarte Teixeira.

Por outro lado, “a abundância de murganhos na Deserta Grande é largamente superior ao que havíamos antecipado”, lamenta o mesmo responsável, que destaca a “boa surpresa” que foi, nestas duas expedições, “a equipa de trabalho criada e a rápida ligação estabelecida”. “Não nos conhecíamos uns aos outros e em muito pouco tempo estabelecemos laços que nos vão acompanhar ao longo das nossas vidas.”

Passageiros num avião para o Reino Unido…

Mas a história do resgate destes caracóis não se fica pelo arquipélago da Madeira. Depois de recolhidos, várias dezenas seguiram viagem para Inglaterra em aviões da TAP, com destino aos parceiros responsáveis pela reprodução em cativeiro.

O primeiro transporte aconteceu em Junho passado, com 118 caracóis das espécies Discula lyelliana e Geomitra grabhami, que tinham sido recolhidos em Maio. Os animais foram transportados em caixas de madeira, seguindo as regras de transporte da IATA – Associação Internacional de Transporte Aéreo e da EAZA – Associação Europeia de Zoos e Aquários.

Os pequenos moluscos “foram acondicionados em tubos de plástico, os quais por sua vez foram colocados em caixas de plástico e isolados dentro de uma caixa de esferovite”, recorda o malacólogo madeirense. “O transporte foi efectuado no cockpit do avião e com direito a cadeira independente, do Funchal para Manchester, com paragem em Lisboa.”  

O mesmo aconteceu com os 37 caracóis da espécie Atlantica calathoides, que seguiram para o mesmo destino em Dezembro, depois de terem sido resgatados no mês anterior.

Chegados ao Reino Unido, passaram para os especialistas ligados ao Zoo de Chester e à Sociedade Zoológica de Bristol. Estas duas entidades são conhecidas mundialmente “pelo seu conhecimento técnico e pelo trabalho no salvamento de espécies”, ligado à criação de dois centros de reprodução que “praticamente replicam as condições perfeitas para estes caracóis se reproduzirem e terem sucesso”, adianta um comunicado dos parceiros do projecto, enviado à Wilder.

E para já, os esforços estão resultar. “Estes caracóis não eram vistos há décadas e pensávamos que se tinham extinguido, e por isso tornou-se necessária a tomada de medidas urgentes quando foi encontrado apenas um punhado destes caracóis especiais, agarrados à sobrevivência”, nota Gerardo Garcia, curador para os Vertebrados Inferiores e Invertebrados no Zoo de Chester, referindo-se às duas espécies que chegaram há mais tempo ao Reino Unido (Discula lyelliana and Geomitra grabhami).

Gerardo Garcia lembra que em Chester começaram com 20 dos últimos indivíduos conhecidos de cada grupo, “mas com o conhecimento técnico, a base científica e as competências desenvolvidas aqui no zoo com outros invertebrados criticamente em perigo, a nossa equipa conseguiu desenvolver as condições de reprodução ideais.” Em poucos meses, os especialistas na reprodução em cativeiro já tinha conseguido obter mais de 1.200 caracóis das primeiras espécies ali chegadas.

… e de regresso às origens

Quanto ao destino dos caracóis nascidos em cativeiro, ainda vai ser discutido. Para já, adianta por seu turno Dinarte Teixeira, não existe uma data para a reintrodução destas três espécies.

O futuro poderá começar a definir-se dentro de poucos meses, já depois da nova expedição que em Março vai tentar o resgate dos caracóis da espécie Geomitra coronula. “Em Junho decorrerá, no Funchal, um workshop colaborativo que contará com a presença dos parceiros de projecto e vários especialistas nacionais e internacionais, onde será discutida a estratégia de conservação para estas espécies de moluscos terrestres.”

Em causa estão as medidas que vão ser tomadas para garantir que estes caracóis sobrevivem na natureza. “Caso se consiga mitigar o impacte das ameaças no terreno a curto prazo, poder-se-á avançar para o reforço das espécies existentes na Deserta Grande”, refere o mesmo responsável.

Mas existe pelo menos uma outra opção em aberto para o futuro destes animais a curto prazo: a ilha do Bugio, também no grupo das Desertas, na qual não existem cabras, ratos e coelhos. Nesta ilha, os registos fósseis entretanto encontrados indicam que já terão existido populações desses caracóis.

Será então no Bugio que estes pequenos caracóis madeirenses vão alcançar o seu “final feliz”? Tiago de Zoeten, biólogo ligado à Mossy Earth e membro das expedições de resgate, acredita que sim. “A situação destes caracóis terrestres da Madeira é muito preocupante, mas esperamos que este projecto demonstre como é que esforços dirigidos podem dar a volta a casos como este”, afirma.

“Na Mossy Earth, focamos-nos muitas vezes em causas desprezadas como forma de alcançar o maior impacto possível, e é por isso que estamos muito excitados com a contribuição para apoiarmos o trabalho de campo necessário para continuar com o resgate destas espécies de caracóis.”

Símbolos de resiliência da biodiversidade local

Certo é que estas quatro espécies de caracóis são um pequeno exemplo da riqueza do arquipélago da Madeira. Dinarte Teixeira lembra que os moluscos terrestres são dos seres vivos mais antigos da Terra – já por aqui andavam há mais de 200 milhões de anos – e as ilhas madeirenses são “um verdadeiro ponto quente” no que a este grupo diz respeito, com um total de 320 espécies distintas de moluscos registadas.

Destas, mais de 70% são endémicas desta área, existindo apenas nestas ilhas, e “isso por si só já é fabuloso, pois são madeirenses há milhões de anos”, destaca.  

Quanto às Desertas, onde há registo de cerca de 55 espécies deste grupo, na maioria endémicas, cerca de 50% desse total está hoje extinto localmente devido às diversas ameaças sofridas, incluindo as cabras e os musaranhos. “Nesse sentido, os caracóis das Desertas são uns sobreviventes e um verdadeiro símbolo de resiliência da biodiversidade local”, sublinha o malacólogo.

Ao nível do ecossistema, lembra, os moluscos terrestres contribuem para a decomposição da matéria orgânica, bem como para o ciclo dos nutrientes no solo. “Estes são maioritariamente detritívoros, isto é, alimentam-se de extratos de origem animal e vegetal em decomposição.”

Em sentido inverso, os caracóis servem ainda como fonte de alimento para alguns passeriformes que visitam as ilhas – por exemplo os tordos – e também para alguns escaravelhos endémicos.

De acordo com o especialista, as quatro espécies que são alvo do projecto podem ser encontradas “em áreas cobertas por feto comum (Pteridium aquilinum ssp. aquilinum), utilizando os ramos caídos desta planta para refúgio e ainda como fonte de água e alimento”. Estes caracóis “alimentam-se ainda de líquenes dos géneros Rocella, Seirophora Xanthoria.”


Saiba mais.

Conheça a história em vídeo (em inglês) das expedições de resgate das quatro espécies de caracóis nas ilhas Desertas, aqui e aqui.

Inês Sequeira

Foi com a vontade de decifrar o que me rodeia e de “traduzir” o mundo que me formei como jornalista e que estou, desde 2022, a fazer um mestrado em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova. Comecei a trabalhar em 1998 na secção de Economia do jornal Público, onde estive 14 anos. Fui também colaboradora do Jornal de Negócios e da Lusa. Juntamente com a Helena Geraldes e a Joana Bourgard, ajudei em 2015 a fundar a Wilder, onde finalmente me sinto como “peixe na água”. Aqui escrevo sobre plantas, animais, espécies comuns e raras, descobertas científicas, projectos de conservação, políticas ambientais e pessoas apaixonadas por natureza. Aprendo e partilho algo novo todos os dias.

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