Cavalo-marinho-de-focinho-comprido (Hippocampus guttulatus). Foto: Sylvie Dias

Portugal escondido: os cavalos-marinhos que vivem frente à Trafaria, Almada

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Investigadores do projecto CavALMar mergulharam no Tejo para saber quantos são e onde vivem os cavalos-marinhos do concelho de Almada, da Cova do Vapor à Base Naval do Alfeite. A Wilder acompanhou uma das saídas de campo e conta-lhe o que viram.

Nesta manhã de Junho, a ventania na zona da Trafaria, na margem Sul do rio Tejo, faz voar a areia em grandes rajadas. Mas no fundo do rio, os sedimentos estão suficientemente calmos para permitir um mergulho.

De pé junto à margem do rio, o grupo prepara-se. Mário Rolim, responsável pela segurança e pela manutenção dos equipamentos, Sylvie Dias, que está a fazer filmagens do projecto e duas investigadoras do MARE-ISPA – Noelia Rios e Friederike Peiffer – vestem rapidamente os fatos e colocam às costas as garrafas de ar comprimido. Pouco passa das 11h00 e os quatro desaparecem entre as ondas. 

Estes investigadores do projecto CavALMar estão a tentar saber quantos são e onde vivem os cavalos-marinhos do concelho de Almada, da Cova do Vapor à Base Naval do Alfeite.

Um cavalo-marinho-comum (Hippocampus hippocampus), junto à frente ribeirinha do município de Almada. Foto: Sylvie Dias

Os cavalos-marinhos pertencem à família dos singnatídeos. Em Portugal ocorrem duas espécies, o cavalo-marinho-de-focinho-comprido (Hippocampus guttulatus) e o cavalo-marinho-comum (Hippocampus hippocampus).

Segundo Miguel Correia, investigador ligado ao CavALMar e perito em singnatídeos, há cavalos-marinhos na Ria Formosa, onde está a população que tem sido mais estudada, mas também no estuário do Tejo e nos estuários do Sado, Arade, Mira, Mondego, entre outros.

Para quem vive na costa do concelho de Almada, a existência de cavalos-marinhos nas águas do Tejo não é novidade. Numa tese de mestrado concluída em Junho, Joana Macedo de Oliveira, investigadora no MARE-ISPA, ouviu muitos pescadores a recordarem a tradição associada a estes peixes, apanhados por acidente em redes de pesca, como talismãs. Depois de secos, havia – haverá ainda? – quem os usasse no chapéu ou os guardasse para atrair boa sorte e prosperidade.

Mas apesar de a existência de cavalos-marinhos ali na zona ser já conhecida, a importância destas populações é algo novo para a comunidade científica.

Foi em 2019 que Gonçalo Silva, biólogo marinho da unidade regional de investigação do MARE – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente no ISPA/Lisboa, encontrou pela primeira vez vários cavalos-marinhos quando mergulhou no estuário à sua procura, em frente à Trafaria, desafiado por um amigo que ali vive e se dedica ao mergulho profissional, Mário Rolim. “Após o primeiro mergulho que fiz, disse: ‘Temos de fazer alguma coisa aqui, porque não é normal num mergulho de 40 a 45 minutos vermos 10, 12, 15 cavalos-marinhos’”, recorda o biólogo marinho.

Um mergulho de exploração em busca de cavalos-marinhos. Foto: Sylvie Dias

Depois de vários contactos com a Câmara Municipal de Almada, em 2022 foi assinado um protocolo para o projecto CavALMar. Esta parceria entre o MARE-ISPA e a autarquia, que financia os trabalhos de investigação, foi lançada com o objectivo de se saber quantos são e onde vivem os cavalos-marinhos do concelho.

Assim, entre Setembro passado e este último mês de Julho, uma equipa de investigadores fez mergulhos de exploração em 13 pontos diferentes da frente ribeirinha norte do concelho, da Cova do Vapor ao Alfeite, quando as condições do rio o permitiam e quando tinham licença das autoridades. É que durante uma boa parte do ano as águas do Tejo ficam de tal forma turvas – basta chover e levantarem-se os sedimentos do rio – que os investigadores deixavam de ter condições para encontrar estas pequenas criaturas.

Cavalos-marinhos vivem no meio do lixo

Na baía da Trafaria, os cavalos-marinhos adaptaram-se ao ambiente local. A qualidade das águas do rio melhorou muito nos últimos anos graças à instalação de estações de tratamento, mas continua a haver muito lixo: pedaços de redes de pesca, linhas e canas e anzóis, bocados de armadilhas destinadas a polvos – ou não fosse esta uma terra de pescadores – mas também muitas garrafas de plástico. E até objectos muito maiores, que ninguém adivinharia que por ali andam. 

Nos seus mergulhos na Trafaria, Gonçalo Silva já encontrou carrinhos de supermercado completamente submergidos. Num sinal dos tempos, deparou-se com cavalos-marinhos que se agarravam com as caudas enroladas à volta dos ferros destas estruturas, como se substituíssem as ervas das pradarias marinhas que lhes servem de abrigo no habitat natural. “Isto não é necessariamente bom”, ressalva o biólogo marinho.

Um carrinho de supermercado, escondido pelas águas do estuário do Tejo. Foto: Sylvie Dias

Tanto aqui no Tejo como um pouco por todo o mundo, os peixes singnatídeos (cavalos-marinhos e marinhas, entre outros) estão ameaçados, pois vivem em locais muito afectados pelas actividades humanas.

“Estes peixes têm uma relação muito particular com o fundo. Devido às suas características não são muito móveis e por isso a ameaça é ainda maior”, descreve Gonçalo Silva, que adianta que “a destruição e fragmentação dos habitats, sobretudo dos habitats costeiros e estuários pouco profundos onde estes singnatídeos vivem, faz com que fiquem ameaçados”.

No estuário do Tejo, além de serem apanhados acidentalmente nas redes de pesca, tanto os cavalos-marinhos como muitas outras espécies que ali vivem são também vítimas das ganchorras – um equipamento que arrasta tudo aquilo por onde passa, no fundo do estuário, usado para a apanha de amêijoa.

“Existem cerca de 30 licenças atribuídas desde a Trafaria ao Bugio [concelho de Cascais], mas muitas pessoas operam sem licença”, critica Gonçalo Silva, que alerta para os fortes impactos que estas pequenas dragas têm para a vida do rio. A falta de cumprimento das regras e de uma fiscalização mais eficaz é, aliás, um problema reconhecido pela comunidade local, em resposta aos cerca de 100 inquéritos realizados por Joana Macedo de Oliveira na sua tese de mestrado. 

À procura, mesmo ao lado do terminal dos cacilheiros

Durante um par de horas, a equipa irá nadar em busca de cavalos-marinhos nas águas junto ao Forte de Nossa Senhora da Saúde, alguns metros à direita do terminal de cacilheiros da Trafaria.

Cá fora, Gonçalo Silva, que não mergulhou devido a uma lesão recente, enumera o que as investigadoras têm feito noutras ocasiões, e que terão de repetir se encontrarem um destes peixes: “Quando isso acontece, têm de agarrar no cavalo-marinho, medi-lo, fotografá-lo e retirar uma amostra de tecido para se analisar o ADN.”

Medição de um cavalo-marinho. Foto: Sylvie Dias

Enquanto esperamos, vamos observando o lixo espalhado naquele lado da enseada, à beira do rio. Algumas placas e inúmeras esferas minúsculas feitas de esferovite convivem com destroços de madeira e com garrafas, copos e tampas de plástico, fios de nylon e conchas de choco, entre outros vestígios da forte actividade humana que ali se faz sentir.

Entretanto, já são quase 13h00 e finalmente os quatro mergulhadores saem do rio. Desta vez tiveram pouca sorte e não encontraram cavalos-marinhos, apenas uma marinha da espécie Syngnathus acus e uma rede fantasma, como se chama às redes de pesca que ficam abandonadas debaixo de água.

Mas ainda restam outros locais para explorar, como a zona junto ao porto de abrigo onde, apesar de existir também muita poluição, há relatos de várias observações. Ali, a existência de muitos cabos de amarração destinados aos barcos de pesca é também propícia a estes peixes, que os aproveitam para se agarrarem com as caudas. 

Quinze cavalos-marinhos

Passadas poucas semanas e concluídos todos os mergulhos do trabalho de campo, a equipa de investigadores tinha contabilizado um total de 15 cavalos-marinhos na baía da Trafaria – isto sem contar com os 20 que tinham sido resgatados da mesma zona em Março de 2022, quando ali se deu a queda de um pontão, e que estão à guarda do Oceanário de Lisboa.

“A comunidade de cavalos-marinhos residente no porto de abrigo da Trafaria encontra neste local, embora altamente impactado pelo lixo marinho, um sítio abrigado e com estruturas de fixação, onde podem fazer face às correntes marinhas”, indica Miguel Correia, que actualmente está a trabalhar na University of British Columbia, no Canadá.

Cavalo-marinho-de-focinho-comprido (Hippocampus guttulatus) no estuário do Tejo, no meio do lixo. Foto: Sylvie Dias

“Mesmo que seja artificial, qualquer estrutura de fixação é importante para estas espécies, já que possuem locomoção limitada quando os comparamos com outros peixes.”

Os resultados saídos do trabalho de campo mostram também que foram observados singnatídeos em nove dos 13 locais do projecto CavALMar, adianta por sua vez Gonçalo Silva. 

Além dos vários locais onde detectaram cavalos-marinhos, na costa ribeirinha do concelho de Almada, e da forma como estes se foram adaptando ao ambiente pouco natural que os rodeia, outra descoberta que surpreendeu os investigadores foi o tamanho desses peixes face aos que foram estudados em toda a sua área de distribuição. Numa tese de mestrado desenvolvida por Kara McKee, em que esta comparou centenas de fotografias captadas de cavalos-marinhos, a investigadora explica que essas características se fazem notar em especial na população da Trafaria, faltando ainda perceber quais serão os motivos.

Para o futuro, a equipa de investigadores tem esperança de poder avançar com o restauro das pradarias marinhas desta zona de transição entre o rio e o Atlântico, que serve de abrigo aos cavalos-marinhos e a tantas outras espécies. Mas isto só será possível, acredita o investigador do MARE-ISPA, se conseguirem envolver os habitantes e as empresas locais nos objectivos de conservarem a biodiversidade desta área ribeirinha e se se reforçar a fiscalização. Este poderá ser o passo que se segue na recuperação da natureza no estuário do Tejo.

Inês Sequeira

Foi com a vontade de decifrar o que me rodeia e de “traduzir” o mundo que me formei como jornalista e que estou, desde 2022, a fazer um mestrado em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova. Comecei a trabalhar em 1998 na secção de Economia do jornal Público, onde estive 14 anos. Fui também colaboradora do Jornal de Negócios e da Lusa. Juntamente com a Helena Geraldes e a Joana Bourgard, ajudei em 2015 a fundar a Wilder, onde finalmente me sinto como “peixe na água”. Aqui escrevo sobre plantas, animais, espécies comuns e raras, descobertas científicas, projectos de conservação, políticas ambientais e pessoas apaixonadas por natureza. Aprendo e partilho algo novo todos os dias.

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