Paulo Catry, a meio caminho entre os Açores e a Gronelândia, conta-lhe como é ter nas mãos uma ave extraordinária, “um colosso de nervo e resistência”, a quem lhe deram o nome de alma-de-mestre. Nesta quarta crónica, escrita a bordo do navio oceanográfico RSS Discovery, o investigador do MARE-ISPA conta-lhe como aconteceu uma experiência inédita no mundo das aves.
16 de Junho – Estamos agora mais ou menos a meio caminho entre os Açores e a Gronelândia. Em apenas 3 dias de navegação para norte passámos por várias frentes oceânicas, com a temperatura da água a descer abruptamente em cada uma delas. Temos agora uma água a 9 graus celsius, e muitas aves que vêm do ártico.
Tartarugas-marinhas, que se viam há poucos dias, estão agora longe na memória. Mas hoje é um dia especial, são observadas 2 baleias-azuis, o maior animal que existe ou existiu em toda a história do nosso planeta. As aves são mais abundantes do que nunca. Durante horas de navegação sucedem-se bandos de pardelas-de-barrete e grupos de pombaletes (Fulmarus glacialis). Estes últimos são bastante curiosos. A partir de dados obtidos com aparelhos de seguimento remoto, sabemos que se juntam aqui aves de sítios tão distantes como a Escócia, a Gronelândia ou o Canadá. Algumas apresentam uma plumagem bem escura, características das populações com origem no Ártico.
Faz hoje 10 dias que saímos de Southampton, em Inglaterra. Desde o primeiro dia que nunca mais vimos terra e assim continuará a ser até ao final da viagem, no dia 2 de Julho. Quem se mete nestas viagens transoceânicas tem que estar bem preparado para resistir ao enjoo ou ao isolamento. Estamos permanentemente a muitas centenas ou a mesmo mais de um milhar que quilómetros do porto mais próximo. Não há como sair do navio em caso de indisposição!
17 de Junho – Como todos os dias, há gente a contar aves que passam pelo navio em movimento desde o nascer ao por-do-sol. São dias longos, estes de Junho, mormente a latitudes elevadas. Vamo-nos revezando em turnos, com equipas de duas pessoas para observar aves e outras duas a procurar e a contabilizar mamíferos marinhos. Enquanto uns observam, outros vão preparando o engodo para atrair as aves, organizando os registos e as amostras colhidas, analisando dados da área onde estamos, obtidos remotamente por satélites, escrevendo notas para blogs e diários, entre muitas outras atividades.
Ao início da noite, e também logo antes da alvorada, pára-se o navio para recolher dados oceanográficos até cerca de 500m de profundidade, usando um grande aparelho que dá pela sigla de CTD, e que mede a temperatura, a salinidade, e recolhe amostras de água em várias profundidades. À noite é também lançada uma pequena rede de plâncton, que obtém amostras entre os 200m e a superfície. Isto vem complementar as medições automáticas e constantes de temperatura, de salinidade e de clorofila que o navio faz nas camadas superficiais por onde navega. Toda esta informação será posteriormente integrada, de forma a procurar-se compreender o que explica tamanha variabilidade no número de aves, golfinhos e baleias que vamos encontrando ao longo do caminho. Em certos dias, o mar fervilha de vida, enquanto noutros, chegam a passar-se horas em que não se vê praticamente nada.
18 de Junho – Primeiro dia de calmaria, depois de quase duas semanas de vento. Que alívio (mas sabemos bem que a borrasca segue dentro de momentos)! Finalmente temos condições para uma experiência inédita: montar redes verticais para apanhar pequenas aves. Esta é uma atividade corriqueira de muitos investigadores em terra, mas montar redes num navio no meio do Atlântico, a mais de mil quilómetros da costa mais próxima, é algo que possivelmente ninguém tentou desde que o mundo é mundo. Conseguimos arranjar espaço à proa para duas redes de 12 metros de comprimento. Em meia hora de trabalho, ergue-se o aparato, e distraímo-nos a observar as cagarras e os golfinhos que nos acompanham neste fim-de-tarde de mar-de-azeite.
Após o anoitecer, enquanto o Discovery permanece imóvel para lançar o CTD, ligamos uma aparelhagem com sons de painhos-de-cauda-forcada (Oceanodroma leucorhoa), na esperança de atrair as pequenas aves. Não temos que esperar muito. Ao fim de um quarto de hora ouve-se uma resposta vinda do mar escuro, sem luar. Aos poucos apercebemo-nos que vários painhos andam à volta do navio, em visões fugidias só possíveis quando as aves cruzam os feixes de luz que saem de janelas e iluminações exteriores. Em duas horas apanhamos três. Não é uma fartura, mas o método funciona, e grão a grão…
São extraordinários, estes painhos. Não pesam mais que 45 gramas e vivem aqui fora, no oceano aberto, sem ir a terra durante meses, às vezes anos a fio. Delicados que parecem, são um colosso de nervo e resistência, sobrevivendo às enormes tempestades que por vezes não dão tréguas durante vários dias. Frio, vento, escuridão no inverno, nada parece fazê-los perder o ânimo, pacientemente procurando alimento nesta imensidão tantas vezes cinzenta, que faz marinheiros encardidos sonhar com mares solarengos e praias tropicais. Dantes, ao verem estes pequenos seres, escuros, por vezes seguindo os navios, os marítimos imaginavam tratar-se das almas de outros homens perecidos no mar. Por essa razão, ainda hoje o nome dado a algumas aves desta família é “alma-de-mestre”. São alminhas bem simpáticas e pacíficas. Na mão, quase não se debatem nem bicam. Ficam muito mansas, a observar.
É um prazer, feitas as medições e as colheitas de amostras, chegar à amurada, e abrir as mãos em concha, com um painho em cima.
Com calma, as aves observam tudo em redor sem pressa, espreguiçam-se num tremelique de ilusória fragilidade, e finalmente lançam-se no seu voo de alma marítima. Tão valentes que certamente mereceriam, como as almas, o privilégio da eternidade.
[divider type=”thick”]Diário de bordo de Paulo Catry
Leia aqui as crónicas de Paulo Catry, investigador português que está a a bordo do navio RSS Discovery no Atlântico Norte. Conheça aqui mais sobre esta expedição científica internacional.