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Maria Teresa nunca tinha visto uma maré de algas como esta na sua praia

05.05.2020

A leitora Maria Teresa Santos é uma visitante assídua da natureza na Península de Tróia. Escreve na Wilder sobre a maré de algas, de uma dimensão que nunca tinha visto em mais de 20 anos, a que assistiu em Abril. 

 

O isolamento encarregou-me de espiar a natureza na Península de Tróia. A reclusão por estes lados está a coincidir com um fenómeno assinalável e, há que admitir, permite o privilégio de observar o desenrolar dos acontecimentos com calma e consideração. 

Por volta do dia 29 de Março, começaram a aparecer algas castanhas na praia. Nos dias seguintes continuaram a encher a praia, até que no dia 2 de Abril a praia estava completamente coberta, como nunca vi em mais de 20 anos – acolchoada numa extensão de 1 km por uma espessura de 30 cm, às vezes meio metro! Dava para nos atirarmos e cair como num mergulho de chapão sem nos magoarmos. 

 

Praia Atlântica a 2 de Abril, durante o recuo da maré que depositou o colchão de algas

 

Marés de algas como esta sempre foram comuns, mas ultimamente têm vindo a ganhar mais atenção pelos cientistas que dizem haver evidência de um aumento da sua frequência devido a um conjunto de factores, naturais e antropogénicos. 

 

Tufo de Dyctiota sp.: talos laminares, ramificadas, castanhos translúcidos

 

Por um lado, depende muito da ocorrência de condições meteorológicas e oceanográficas particulares à movimentação de uma tal massa de algas – como uma corrente propícia ou muitos dias seguidos de vento intenso que podem fazer com que as águas profundas subam à superfície e se aproximem da costa (a causa mais provável para a maré de algas em questão). No contexto futuro de alterações climáticas, tal poderá vir a ser cada vez mais acentuado. 

 

O lençol de algas vai-se depositando no areal, seguindo os avanços e recuos das marés

 

Por outro, surgem indícios de que a crescente escorrência de nutrientes, como o fósforo e o azoto, quer provenientes da poluição de rios por fertilizantes agrícolas quer presentes nos efluentes urbanos, que são descarregados pelas ETAR em rios e mar, já anda a mexer com estes ciclos biogeoquímicos ao nível dos oceanos. Um aumento generalizado da carga de nutrientes nos mares vem propiciando proliferações anormais e localizadas de algas. 

Um exemplo foi o da invasão de alfaces-do-mar (Ulva sp.) no Verão passado no Sotavento Algarvio – e que se multiplicam demasiado na Ria Formosa quando as condições ideais de temperatura e luz se combinam com concentrações elevadas de nutrientes na ria, que é um receptor de efluentes urbanos. 

Outro caso, de maior escala, é o aparecimento de um novo “Mar dos Sargaços” na área equatorial do Atlântico Norte, entre a África e o Brasil, e que vem sendo associado à poluição já referida, a mudanças nas correntes oceânicas, às alterações climáticas e ainda aos transportes.

Não só esta massa de Sargassum sp. que atinge e se acumula em quantidades na ordem dos 120 mil metros cúbicos pelas praias do Mar das Caraíbas afecta o turismo balnear em vários países que dele dependem, também impacta negativamente alguma da vida aquática ao acrescentar muita matéria orgânica a ecossistemas que dependem da penetração da luz do Sol até ao fundo do mar. Estes podem mesmo desaparecer nalgumas zonas, como é o caso de certos prados marinhos. 

Por aqui, o que é que eu observo? O que se anda a passar na minha praia com a chegada destas algas?

 

Três tonalidades, que indicam a ordem cronológica das deposições diárias e consequentes estados de secagem, já no dia 8 de Abril

 

O cheiro típico é evidente, claro. Pessoalmente não me incomoda, mas pesquisando fico informada de que o sulfeto de hidrogénio (ou gás sulfídrico), libertado pela maioria das algas em decomposição, é tóxico para os humanos (se expostos de forma crónica). Reparo que por baixo da crosta superficial formada por algas já secas, a camada de algas está verde uma vez que a humidade continua elevada, o arejamento vai-se reduzindo e um processo de fermentação é iniciado.

 

Camada verde por baixo da superficial de algas secas, evidenciada no perfil de uma pegada

 

Também há uma mudança na estrutura do “perfil de solo” do areal. As marés determinaram uma alternância na deposição de algas e areias pelo que algumas partes, que aos olhos parecem ser terra firme por serem brancas, escondem almofadões de algas que acabamos por descobrir quando os pés se enterram de forma aleatória. Tenho a sensação engraçada de caminhar em cima de uma gigante empada. 

Penso em que consequências este enterramento súbito de algas em decomposição poderá ter no ecossistema, se prejudiciais ou benéficas, se serão na devida escala. Poderá tornar-se um aporte de nutrientes com um pico pontual ou algo subtil e prolongado no tempo? Serão estes lixiviados pela acção constante das marés para as zonas entremarés ou sublitoral da Península de Tróia ou percolarão para os confins do banco de areia? Seriam um pequeno foco de poluição bioquímica ou uma inesperada mas bem-vinda fonte de alimento para os organismos que aí vivem? Não sei.

 

Os mini-desabamentos do areal que esconde as algas

 

E por falar em organismos, esta algas arrastam consigo várias e variadas criaturas interessantes. A maioria delas acaba por morrer, fora da água. Vou pela beira-mar a tentar encontrá-las para as atirar de novo para lá das ondas que rebentam, na esperança de que voltem a respirar e recuperem, embora não faça ideia se isso de facto ajuda. Também me move a curiosidade, confesso, pois enroladas nestas nuvens algáceas, vêm espécies dos fundos marinhos com que nunca me havia deparado antes. 

A que mais encontro é uma lebre-do-mar, a Aplysia depilans, nativa nestes mares que rodeiam a Península Ibérica, sendo possível encontrá-la desde as Ilhas Britânicas até ao Mediterrâneo.

Os ingleses lembraram-se de uma cómica tradução (‘depilatory sea hare’ que se traduz para lebre-do-mar “depilatória”) e esta etimologia popular deu origem ao mito de que o seu consumo causava perda de cabelo. Sim, porque este fabuloso gastrópode marinho pode-se comer.

Por sua vez, estas lesmas-do-mar (como também são conhecidas) alimentam-se de algas já aqui referidas: Ulva sp. e Dyctiota sp. – o que faz sentido. Encontro-as perfeitamente camufladas, tanto que partilham a cor com as Dyctiota, e contraídas devido à dessecação. De boa saúde estes seres deslumbrar-nos-iam com a sua locomoção: ondulando o seu manto de feiticeiro “voam” na água como que por artes mágicas. 

 

Aplysia depilans com os rinóforos e os tentáculos propodiais visíveis

 

Um dia, encontrei um búzio que me impressionou. Já conhecia a concha em si mas nunca tinha imaginado que o animal seria assim. Os nomes comuns atribuídos ao Cymbium olla em português são, por sinal, bastante descritivos: pata-de-burro e ferro-de-engomar. O seu corpo era um naco gigantesco de carne, muito maior que a própria concha, sarapintado de amarelo e castanho. Respirava, mexia-se.

Tive pena de não poder tirar uma fotografia para provar o encontro com tal criatura, pois não levava telemóvel, mas imperava devolvê-lo ao meio líquido. Era bem pesado!

Outro ‘alien’ com que me cruzei foi uma espécie de verme-marinho, que não sei identificar mas terei ajuda em breve do consultório “Que espécie é esta?” da Wilder. Media cerca de 15 cm e era gelatinoso quase transparente, com umas bolinhas também translúcidas suspensas no seu interior. Distinguiam-se bem os orifícios de entrada e saída. Para mim, era estranhíssimo.

 

Animal desconhecido mas curioso, encontrado em Tróia

 

Que mais se vê nesta maré de algas? Outros náufragos recorrentes nesta praia, mas agora em maior número, como: cachos de ovos de choco-comum (Sepia officinalis), carapaças sem espinhos de batatas-do-mar (Echinocardium cordatum), apontamentos de algas vermelhas Plocamium sp., os clássicos caranguejos Polybius henslowii, pedaços de corais (relembre-se a proximidade à Arrábida) e, não podia deixar de ser, lixo.

As ondas por cá têm-me dado que pensar. E que apanhar. 

 

 

Entretanto duas semanas depois, a maré de algas já passou, mas ainda deixou vestígios.

 

Vestígios da maré de algas que já passou, captados a 18 de Abril

 

[divider type=”thin”]Agora é a sua vez.

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