Há mais de 30 anos que não há um registo de gato-bravo nos maciços montanhosos da Lousã e Sicó. Durante um ano, um biólogo e um guia turístico de natureza procuraram este felino. E quando já tinham perdido a esperança, eis que conseguiram um registo, ainda que noutra zona do país, em Montesinho.
O destino do raro gato-bravo (Felis silvestris) parece tornar-se mais definitivo a cada ano que passa. Esta espécie selvagem enfrenta desafios tais que podem fazê-lo desaparecer do nosso país. Em Portugal, esta espécie está classificada como Vulnerável, segundo o Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal (2005). Mas este estatuto poderá estar prestes a agravar-se.
Um dos maiores desafios será a dificuldade em sabermos quantos animais ainda existem e onde estão. Encontrar e identificar um gato-bravo é um enorme desafio. Isto porque, além de talvez já serem muito raros, há uma grande semelhança com o gato-doméstico. De momento, as equipas do novo Livro Vermelho dos Mamíferos estão a trabalhar para perceber como está a distribuição e abundância desta espécie em Portugal. Para isso foi feita armadilhagem fotográfica e transectos para registar indícios de presença (como pegadas e excrementos).
Deixar desaparecer esta espécie sem tentar fazer algo não era opção para Manuel Malva e Alberto Mesquita, dois amigos que tinham a decorrer um projecto de registo de fauna através de fotoarmadilhagem na região de Coimbra Sul. As suas câmaras já tinham registos de inúmeras espécies, como veados-vermelhos, corços, texugos, raposas e javalis.
A dada altura do projecto “começámos a pensar que outro mesomamífero poderia eventualmente ainda ser possível registar na região. Chegámos a uma conclusão unânime: o gato-bravo (Felis silvestris)”, contou à Wilder Manuel Malva, 25 anos, biólogo e fotógrafo de natureza.
Manuel e Alberto, que moram em Coimbra, deitaram então mãos à obra para avaliar a situação populacional actual do gato-bravo na região Centro, mais concretamente nos maciços montanhosos da Lousã e Sicó. Segundo Manuel Malva, “não existe informação recente disponível sobre a espécie na região”.
Os últimos registos de gato-bravo tinham mais de 30 anos. Será que este felino ainda viveria naquelas montanhas?
O maciço de Sicó e da Lousã são áreas bem conservadas, menos fragmentadas e onde há habitats propícios e com menor pressão humana. Tudo isto são “requisitos muito importantes para a ocorrência do gato-bravo”.
Durante um ano – de Janeiro de 2020 a Janeiro de 2021 -, Manuel e Alberto colocaram na floresta mais de 10 câmaras de fotoarmadilhagem para procurar indícios de presença do gato-bravo. Este é um projecto que resulta exclusivamente da iniciativa e esforço destes dois amigos.
“A localização foi variando mensalmente, para tentar cobrir ao máximo a área de estudo definida, bem como os múltiplos habitats nela existentes”, explicou Manuel Malva. “As câmaras foram colocadas em locais, à partida, mais favoráveis à optimização da passagem dos animais, como trilhos de fauna na floresta, em clareiras e em linhas de água.”
No entanto, cumprido um ciclo anual do projecto em Lousã e Sicó, não conseguiram qualquer registo.
Por isso, os dois amigos decidiram prolongar a busca pelo gato em novos locais, como no Parque Natural de Montesinho, mais a Norte, e nos locais com maior potencial identificados durante o projecto.
E eis senão quando, a 17 de Maio, conseguiram o que tanto procuraram: um registo de gato-bravo. Uma das suas câmaras captou um gato-bravo, junto a um ribeiro no meio da floresta. O animal foi registado no Parque Natural de Montesinho, fora da área geográfica que tinham definido para o seu projeto.
“É fantástica a sensação de finalmente conseguir este registo!”, partilharam pouco depois nas redes sociais. Ainda que não tenham conseguido qualquer registo ou indício de presença na região onde se tinham inicialmente proposto a procurar a espécie.
Mas como ter a certeza de que este era mesmo um gato-bravo? “A identificação segura de um gato-bravo puro através de fotoarmadilhagem é complexa”, disse Manuel Malva. “Apenas a genética é capaz de providenciar uma resposta incontornável. No entanto, há um conjunto de fatores, indicadores e características que, quando conjugados, permitem apontar para um provável exemplar da espécie”, acrescentou.
“O registo efetuado, numa área remota do Parque Natural de Montesinho, na transição de uma mancha de carvalhal e castinçal para um vale com lameiros, indica um tipo de habitat e local de ocorrência típicos desta espécie, que ainda ocorre na região, ainda que em muito baixas densidades.”
Visualmente, há características que devem ser tidas em conta: “porte corpulento; pelagem densa e riscada, com riscas escuras, onde dominam os tons cinzentos e acastanhados; focinho curto e cabeça volumosa e arredondada; duas listras marcadas na região da bochecha; olhos grandes e de cor geralmente esverdeada; linha dorsal escura, que vai do final do pescoço ao início da cauda; cauda grossa, com pelagem densa e arredondada na ponta, onde se identificam entre três a cinco anéis negros e bem definidos”.
Hoje, “é escasso” o conhecimento sobre a situação e a tendência populacional desta espécie em Portugal.
“É uma espécie muito discreta, furtiva, com territórios extensos, factores estes que, aliados à sua ocorrência escassa e em muito baixas densidades, tornam extremamente difícil a sua deteção e estudo”, comentou o biólogo.
Nas últimas décadas, explicou, a espécie estará em regressão acentuada na sua área de distribuição histórica, nomeadamente nas populações em territórios litorais. “Já no interior, a espécie parece confinada a áreas transfronteiriças, pelo menos no que concerne a populações minimamente consistentes e viáveis.”
Manuel Malva considera que “seria importante perceber se a regressão da espécie continua em curso ou se terá começado a estagnar”.
Este naturalista sublinhou que “é muito difícil implementar medidas de conservação da espécie quando se sabe tão pouco acerca do estado actual das suas populações, bem como das causas que levaram ao seu declínio”.
“Apontam-se como principais causas a perda e fragmentação do habitat, a degradação da floresta nativa, a hibridização com o gato-doméstico e a diminuição da abundância das suas principais presas, nomeadamente o coelho-bravo. Seria importante perceber quais os factores mais decisivos, de modo a poder, então, delinear-se um plano de conservação com bases sólidas e medidas concretas para a recuperação da espécie. No entanto, é prioritário garantir primeiro a qualidade do ecossistema nas áreas onde a espécie ainda ocorre.”