Há milhões de anos, os antepassados das formigas tinham asas. Uma equipa de investigadores descobriu que estes insectos perderam a capacidade de voar para ganhar outra: a capacidade para transportar várias vezes o seu próprio peso.
As formigas terão surgido há entre 145 e 110 milhões de anos atrás. Hoje são um dos grupos de animais mais abundantes do planeta, com 13.500 espécies conhecidas.
Em Portugal estão registadas 121 espécies, ainda que o número possa ser bem maior.
Há milhões de anos, as formigas descenderam de insectos voadores mas hoje apenas a formiga rainha e algumas formigas macho mantêm as asas: são as únicas com capacidade de se reproduzir e voam na época reprodutiva para encontrar um parceiro. Todas as outras – as formigas operárias, que saem da colónia para procurar alimento – não têm asas.
Uma equipa internacional de investigadores – de Portugal, França, Alemanha e Japão – tirou imagens raios X de alta resolução da anatomia interna de duas espécies de formigas e criou modelos tridimensionais da anatomia interna do seu tórax.
“O nosso grupo de trabalho está interessado em perceber a maneira como os organismos têm adaptado a sua forma física para resolver as tarefas e desafios que enfrentam na natureza”, explicou à Wilder Roberto Keller, um dos autores do estudo, investigador do Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais – cE3c, na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, e do Museu Nacional de História Natural e da Ciência (MUHNAC).
“No caso das formigas, achamos fascinante a força das obreiras enquanto realizam os trabalhos de manutenção da colónia – construção do ninho, defesa do território, procura de alimento, criação de novos indivíduos -, e realizámos este estudo para tentar descobrir a origem desta força física.”
Os resultados do trabalho destes investigadores foram publicados agora num artigo na revista científica Frontiers in Zoology. Sugerem que a perda das asas nas formigas operárias está ligada ao facto de estas terem evoluído desenvolvendo uma maior força, com a qual conseguem transportar várias vezes o seu próprio peso.
Dependendo da espécie, estima-se que possam transportar entre 30 a 90 vezes o seu próprio peso.
“Nos insectos voadores, os músculos das asas ocupam a maior parte do tórax, o que significa que outros músculos, envolvidos no movimento da cabeça, pernas e abdómen, ficam constrangidos”, explicou.
“Ao evoluírem perdendo a capacidade de voar, supúnhamos que a configuração destes músculos nas formigas operárias fosse diferente.”
Os resultados confirmaram esta hipótese. “Na ausência dos músculos das asas, o espaço libertado permitiu um incremento significativo no volume, e portanto na força, dos outros músculos – como os do pescoço utilizados para carregar objectos com a cabeça, os das pernas para caminhar e correr suportando grandes pesos e do abdómen para mover o ferrão com maior precisão. E não é só uma questão de massa muscular. Vários destes músculos apresentam pontos de apoio nunca observados, que parecem conferir uma vantagem no seu funcionamento”, acrescentou Roberto Keller.
Os investigadores compararam a anatomia interna das formigas operárias sem asas com a de formigas rainha com asas de duas espécies evolutivamente distantes, confirmando assim a generalidade das descobertas.
Compreender a incrível diversidade que existe na natureza
Durante esta investigação, que começou há dois anos, os cientistas escolheram espécies do Mediterrâneo (de um grupo que está presente em Portugal) e de Madagáscar. “A escolha foi feita pelas características de morfologia das espécies e não necessariamente pela sua distribuição geográfica”, disse Roberto Keller. “Precisávamos de comparar espécies onde as obreiras são muito parecidas em forma e tamanho com as rainhas (como é o caso da espécie de Madagáscar), contra espécies onde as obreiras e as rainhas são muito diferentes no tamanho. Desta maneira conseguimos ter uma maior certeza de que os nossos resultados são gerais para a maioria das formigas e não uma questão restringida a uma só espécie.”
Segundo contou Roberto Keller à Wilder, “não fizemos trabalho de campo especificamente para este projecto, mas estamos constantemente a realizar trabalho de campo para explorar e coletar as distintas espécies de formigas pelo planeta. Desta maneira utilizámos as amostras que, com os anos, vamos depositando em colecções de história natural, como a colecção no Museu Nacional de História Natural e da Ciência, em Lisboa”.
Esta investigação acabou por surpreender os investigadores. “Existe a ideia generalizada de que as formigas obreiras são simplesmente versões sem asas das rainhas”, disse Roberto Keller. “Conseguimos demonstrar que a perda das asas nas obreiras foi, de facto, necessária na evolução destes organismos e possivelmente uma modificação chave para o sucesso ecológico deste grupo de animais”.
“Sempre pensámos que a perda da capacidade do voo ajudou as formigas a optimizar os seus corpos para trabalhar no meio terrestre, mas ainda temos muito que aprender sobre como isto aconteceu”, conclui Evan Economo, investigador que lidera a equipa de Biodiversidade e Biocomplexidade do Okinawa Institute of Science and Technology Graduate University (Japão).
Para Roberto Keller, “achamos que é importante fazer a ligação entre a forma (anatomia) e a função (comportamento) nos organismos, porque desta maneira podemos entender e explicar a incrível diversidade que existe na natureza”.
E ainda há muito para descobrir no mundo das formigas, animais predadores de outros insectos, importantes dispersores de sementes e grande renovadores dos solos.
“Pela sua abundância e diversidade, existem muitos grupos de investigadores pelo mundo a estudar formigas”. “Mas mesmo assim, a diversidade do grupo é tanta (existem mais de o dobro de espécies de formigas que de todos os mamíferos, e mais espécies que todas as aves conhecidas!) que ainda existem muitas questões a estudar, sobretudo se tomarmos em conta que o comportamento social destes insectos é muito complexo.”
Só agora é que os cientistas estão a compilar a grande quantidade de informação genómica sobre estes insetos, assim como informação sobre a sua anatomia detalhada e fisiologia. Isso vai-lhes “permitir perceber como todas estas partes têm contribuído para o seu sucesso evolutivo e ecológico”.
Este estudo resulta da colaboração de investigadores da Universidade de Lisboa, da Universidade de Sorbonne (Paris), da Universidade de Colónia (Alemanha) e do Okinawa Institute of Science and Technology Graduate University (Japão).