Letizia Campioni em trabalho de campo. Foto: J-P Rouja

Histórias de conservação: Letizia Campioni tenta travar extinção da freira-das-Bermudas

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Dada como extinta durante 300 anos, a freira-das-Bermudas (Pterodroma cahow) é uma das espécies de aves em grave perigo de extinção e luta hoje pela sobrevivência. Letizia Campioni, 46 anos, trabalha há 5 anos para trazer esta ave de volta. A história e a entrevista.

WILDER: Quando começou a trabalhar com a freira-das-Bermudas e porquê?

Letizia Campioni: Comecei em 2019 quando a Fundação Mohamed Bin Zayed financiou o primeiro projeto de investigação e conservação que lhe apresentei juntamente com uma equipa internacional de investigadores (do MARE-Ispa, FCUL CE3C e FCUL CESAM) em colaboração com Jeremy Madeiros, chefe do Departamento do Ambiente e Recursos Naturais do Governo das Bermudas e responsável pela monitorização e conservação da freira-das-Bermudas. Queria alargar os meus interesses de investigação e, tendo-me concentrado quase exclusivamente no estudo da ecologia e comportamento das aves, procurava um projeto com um enfoque mais aplicado à conservação. Nessa altura, alguns colegas já estavam a trabalhar com duas outras espécies de freira que se encontram apenas na Madeira e no Bugio (Ilhas Desertas) e fiquei curiosa sobre as outras espécies de freira endémicas do Atlântico.

Letizia Campioni. Foto: J-P Rouja

Fiz uma pesquiza e descobri que a freira-das Bermudas estava a recuperar-se, mas que muito pouco se sabia sobre a sua ecologia e distribuição no oceano. Foi por isso que pensei em contactar o responsável pela conservação desta espécie e propor-lhe uma colaboração mediante a apresentação de um projeto que permitisse estudar o comportamento alimentar e migratório da espécie e monitorizar a exposição à contaminação química a que, no passado, a espécie se revelou sensível. 

W: Pode falar um pouco mais sobre a história desta espécie?

Letizia Campioni: Esta ave marinha, que habita alguns rochedos do arquipélago das Bermudas, foi dada como extinta durante mais de 300 anos, após a chegada do homem àquele habitat. Mas em 1951 uma expedição confirmou a existência de Freiras das Bermudas nesse arquipélago, o que lhe valeu o nome de espécie “Lazarus”. Ainda assim, esta recuperação teve os seus percalços. Logo depois de ter sido redescoberta, nas décadas de 50 e 60, a população de freiras sofreu novo colapso. Isto coincidiu com o uso indiscriminado de DDT que se verificou nessas décadas. Na altura, a descoberta de ovos não eclodidos, com elevadas concentrações de DDT, confirmou a sensibilidade da espécie aos pesticidas e à presença deste nas zonas mais isoladas do oceano. Graças ao constante trabalho e dedicação na conservação desta espécie, do Departamento do Ambiente e Recursos Naturais do Governo das Bermudas, o número de casais reprodutores aumentou de 18 para 156 ao longo dos últimos 60 anos. Esta foi uma pequena vitória, mas ainda com um longo caminho pela frente. Especialmente num cenário de alterações climáticas.

Freira-das-Bermudas. Foto: Kate Sutherland

Enquanto que, até há poucos anos, o foco da protecção desta espécie era identificar e resolver os e problemas que existiam nas suas áreas de nidificação, nos últimos quatro anos aumentou o interesse em perceber para onde a freira-das-Bermudas se desloca quando procura alimentos, e onde passa o seu tempo depois da época reprodutiva. Dado o estado crítico de conservação da freira das Bermudas e a grande extensão das áreas oceânicas utilizadas ao longo do ano, bem como a presença de contaminantes, é um desafio encontrar uma estratégia de gestão para assegurar a sua protecção eficaz. É por isso que a única forma de monitorizar a saúde das espécies, perante um cenário de alterações climáticas que pode modificar o ambiente marinho, é manter o nosso projecto de biomonitorização no mar a longo prazo.

W: E em que consiste este projecto?

Letizia Campioni: Uma das atividades do projecto é registar as viagens de alimentação dos casais reprodutores, identificando também a sua dieta e a possível exposição a vários tipos de contaminantes nos locais de alimentação. A realidade é que mesmo o “alto mar” e as zonas mais remotas do planeta já não são tão preservadas como gostaríamos de acreditar. Isto é confirmado pelas aves marinhas, que funcionam como indicadores do estado de saúde dos ecossistemas e as quais, por vezes, podem elas mesmas sofrer efeitos da exposição a contaminantes que se encontrem no ambiente.

Letizia Campioni e os colegas a trabalhar com freira-das-Bermudas. Foto: J-P Rouja

W: Já existem resultados desta investigação?

Letizia Campioni: Sim. O sucesso de eclosão dos ovos das freiras-das-Bermudas ronda os 67% e quando comparado com espécies do mesmo género/grupo está entre os mais baixos. O nosso trabalho revelou que, mesmo em áreas oceânicas remotas, a espécie está exposta à contaminação por Poluentes Orgânicos Persistentes como alguns pesticidas e subprodutos da indústria. Esta informação é fundamental para trabalhar com espécies altamente ameaçadas de extinção, sabermos até onde é que os contaminantes podem contribuir para esta ameaça e compreender as causas não naturais para uma tão baixa eclosão dos ovos.

W: Qual a situação actual da espécie e quais as perspectivas de futuro?

Letizia Campioni: Actualmente, as freiras-das-Bermudas nidificam em apenas cinco ilhéus na Reserva Natural de Castle Harbour, no Nordeste das Ilhas Bermudas. A partir da sua redescoberta em 1951, quando a população total foi estimada em apenas 18 casais, foi posto em prática um programa de conservação e recuperação que ainda hoje tem como objectivo enfrentar e controlar as principais ameaças à sobrevivência da espécie. Graças ao constante trabalho e dedicação na conservação desta espécie pelo Departamento do Ambiente e Recursos Naturais do Governo das Bermudas, o número de casais reprodutores aumentou de 18 para 170 ao longo dos últimos 60 anos.

Apesar desta tendência positiva, a espécie continua a enfrentar uma série de problemas, nomeadamente a falta de espaço de nidificação adequado. Isso é facilmente compreensível se considerarmos que as Ilhas Bermudas têm uma superfície cerca de 5000 hectares (o dobro do tamanho dos Açores) e uma população de 60.000 habitantes, que se multiplica por 10 (600.000) durante a época turística. Além disso, a natureza das rochas que formam as ilhotas de nidificação (calcário) é facilmente erodida pelo vento e pelas ondas, que estão a causar a perda deste habitat tão importante. A fim de lidar com este problema, ao longo dos anos, foram construídos ninhos de cimento artificial de betão para lidar com este problema, mas que nem sempre conseguem resistir à força dos furacões, cada vez mais frequentes, que atingem as Bermudas. Uma medida de conservação ainda mais eficaz foi conseguida com a criação de duas novas colónias numa das ilhas mais protegidas (Nonsuch Island), encorajando a regeneração da vegetação nativa que também tem o seu papel na proteção contra as fortes rajadas de ventos. 

Foto: J-P Rouja

Embora as ilhas de nidificação estejam separadas da ilha principal por uma faixa de mar, isto não é muitas vezes suficiente para bloquear a chegada de predadores como os ratos, que são bem capazes de atravessar a nado. É por isso que existe um controlo constante e generalizado sobre estes predadores. O caminho para a completa recuperação da espécie é longo e cheio de obstáculos, pelo que é necessário monitorizar a espécie não só em terra, onde nidifica, mas também no alto mar, onde o risco de exposição às actividades humanas pode ser elevado. Para isso, é fundamental manter a sinergia entre os conservacionistas locais e nós, investigadores estrangeiros, que através do nosso trabalho contribuímos com a recolha de informações que depois vão apoiar as acções de conservação.

W: O que mais gosta de fazer no seu trabalho?

Letizia Campioni: O trabalho de investigação é, em si mesmo, muito estimulante, pois há muitos aspectos e mecanismos subjacentes ao comportamento animal e à sua interação com o ambiente que ainda conhecemos pouco. Isto coloca-nos perante desafios constantes e questões que têm de ser respondidas com diferentes ferramentas. Isto leva-nos a aprender continuamente e a estabelecer colaborações que dão força à investigação. Naturalmente, o trabalho de campo é a parte mais gratificante devido ao contacto com os animais e, muitas vezes, com os locais remotos e “selvagens” onde os estudamos. Em suma, nunca nos aborrecemos! Ao longo dos últimos anos, tive também muita satisfação em divulgar os resultados da minha investigação a um público mais vasto, mas também em aproximar os jovens da natureza através de atividades com aves.  

W: Quais os maiores desafios?

Letizia Campioni: Os desafios são muitos! Por exemplo, a captação de recursos por meio da aprovação de projetos é um fator limitante que tem enorme impacto sobre o desenvolvimento do nosso trabalho. Já no âmbito de um projeto, podemos encontrar outros desafios. Por exemplo, a organização do trabalho de campo, especialmente quando se trabalha em locais remotos como ilhas, pode ser muito difícil por termos de solicitar autorizações/licenças e até mesmo apenas para manter comunicação constante com os colaboradores que lá estão. 

Freira-das-Bermudas. Foto: Kate Sutherland

Além disso, trabalhar nesses locais pode ser também dispendioso. No caso específico, as Bermudas foram recentemente nomeadas entre os países mais caros do mundo. Posso confirmar isso! Mas há circunstâncias imprevistas que vão muito além do aspecto administrativo e económico e que não podem ser evitadas. Por exemplo, as condições meteorológicas imprevisíveis e variáveis encontradas durante o trabalho de campo exigiram uma mudança contínua do nosso plano de trabalho, por vezes obrigando-nos a desistir. Ao mesmo tempo, na recolha de dados, utilizamos frequentemente aparelhos eletrónicos, como o GPS, para monitorizar os movimentos das aves, mas estas ferramentas nem sempre funcionam bem e, por vezes, acabamos por ter menos informação do que a desejada.

W: Onde trabalha de momento?

Letizia Campioni: Nos últimos 10 anos tenho trabalhado no MARE-Ispa  em Lisboa, primeiro com uma bolsa de pós-doutoramento e depois como investigadora auxiliar contratada. Desde janeiro deste ano o meu contrato terminou e estou agora desempregada. Apesar disso, continuo a desenvolver as minhas actividades de investigação, inclusivamente o projeto da freira-das-Bermudas na Ornis Italica, uma associação científica sem fins lucrativos de biólogos e naturalistas.


Saiba mais sobre a conservação da freira-das-Bermudas aqui e aqui.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.

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