Dias muito frios, plenos de sol, como os que desfrutamos nas últimas semanas, são fantásticos para caminhadas mas podem revelar-se inesquecíveis se, mais perto de nós, algo de muito especial nos concentra toda a atenção.
A silhueta de um animal robusto progride encosta acima e aproxima-se de uma crista coroada por alguns afloramentos rochosos. Avança com passo relaxado, de onde a onde interrompido para farejar o ar frio do início da manhã. Aí chegado, detém-se. São os olhos, cor de âmbar, fixados na direcção do ruído que o interpela, que mais acicata a adrenalina que me assalta quando mais esta (muito) rara troca de olhares com um lobo, acontece. Desta vez, a presença da espécie não foi confirmada apenas pelos diversos indícios – dejectos, pegadas e até raspagens das garras no terreno que pretendem deixar marcado – detectáveis nas serras do Parque Nacional da Peneda-Gerês.
Entre o grupo eleito dos predadores, o lobo-ibérico não partilha o topo do ranking com outras espécies. A sua beleza está muito acima da média, já de si elevada, que se obtém quando se aprecia tudo o que é selvagem. Inteligente, caçador exímio, provou ser um resistente sem par, face à perseguição sem dó com que o ser humano há muito o atormenta.
Diz-se que o homem primitivo terá aprendido a caçar observando as movimentações engenhosas e persistentes de uma alcateia em busca de alimento e capturando as suas presas. Também a hierarquia que reina em cada família estável de lobos, tem merecido estudos aprofundados, reveladores de uma organização elaborada, ditada pela sua sobrevivência.
Nada disto tem servido para aprendermos a conviver com um dos mais fascinantes animais da nossa fauna selvagem. Ainda hoje, fruto da ignorância, do egoísmo e mesmo da maldade que caracteriza alguma da nossa conduta, o lobo continua a ser abatido a tiro, estropiado em armadilhas cobardes, eliminado através de iscos envenenados que espalham a morte em populações de animais de muitas outras espécies.
Ironia das ironias, aquele que se tornou o fiel amigo do homem, o mais amado dos animais que domesticamos, descende do grande carnívoro cuja vida continuamos a infernizar.
A forma de contrariar o muito de errado que se mantém no nosso relacionamento com o lobo, passa pela produção de legislação eficaz e pela criação de mecanismos dotados de ferramentas requeridas pela execução de acções concretas. Algo que os mais recentes passos dados com esse justo e inadiável objectivo, não garantem que venha a ser alcançado.
Em Agosto do ano passado, o decreto-lei que aprovou a revisão do regime jurídico da conservação do lobo-ibérico revogou legislação numa via que fragilizou, em questões essenciais, a proteção desta espécie selvagem. Desde logo porque passou a considerar o seu abate como um acto sujeito a uma contraordenação sancionável através de uma simples multa e não mais como um crime. A revisão da política de indemnizações por danos atribuídos ao lobo baseada na “realidade observada” (leia-se, elevado montante de verbas pagas ao criadores de gado) tem apenas em mente a redução dos encargos suportados pelo Estado. Isso é tão evidente quanto lamentável, quando se defende que os pastores só são ressarcidos se os animais objecto do dano estiverem guardados por cão pastor e confinados em locais com estruturas adequadas à sua defesa. Ora só quem não conhece o pastoreio que hoje se pratica em grande parte da terra de lobos, essencialmente de bovinos e equinos em regime livre, é que não reconhece que a única forma de forçar com eficácia a execução destas importantes acções de protecção do gado, é através do condicionamento dos próprios subsídios ao pastoreio e não das indemnizações por danos causados pelo lobo. Esta medida é lamentável porque se vira contra o próprio lobo e que será tão mais gravosa quanto menor for o período de transição que é concedido aos criadores de gado, para se adaptarem a esta nova realidade.
Por último, a não aprovação, em simultâneo, do Plano de Acção para a Conservação do Lobo-Ibérico, um documento bem elaborado, com propostas muito importantes e abrangentes, em áreas como a recuperação de habitats, o fomento de presas silvestres ou a gestão do próprio pastoreio e que mereceu o consenso de um vastíssimo conjunto de organismos e entidades, do Estado e do sector privado, envolvendo os principais grupos de interesse em torno da conservação do lobo-ibérico, forçados até a um aturado e frenético desenvolvimento do trabalho para que plano ficasse concluído em tempo útil, é outra evidência da extrema falta de empenho político em pôr termo a uma perseguição sem fim à vista.
No terreno a chacina continua.