O que tem uma tenda a ver com as novas tecnologias de identificação dos insetos? Nesta nova crónica da série “Guardiões das Flores”, uma parceria com o projeto PolinizAÇÃO, fique a par do muito que está a mudar no trabalho dos cientistas com estas espécies.
Os polinizadores desempenham um papel essencial na saúde dos ecossistemas e na nossa qualidade de vida. Ainda assim, enfrentamos um enorme desafio: a “crise da identidade” destes guardiões das flores. Não creia o leitor que são os polinizadores que não sabem quem são, muito pelo contrário. O problema está do nosso lado. Nós, humanos, continuamos a ter uma enorme dificuldade em perceber a sua identidade – “quem são?”-, bem como conhecer o seu papel: “o que fazem?” e “como se relacionam com as outras espécies?”.
Este grande desafio advém da sua enorme diversidade. Só em Portugal existem mais de 2000 espécies de polinizadores, e suspeitamos que este número possa ser bem superior. O seu tamanho reduzido e os seus hábitos discretos são desafios adicionais para que conheçamos bem estes nossos amigos.
A forma tradicional de identificar espécies baseia-se na observação detalhada da sua morfologia e padrão de cor. É fácil distinguir uma borboleta almirante-vermelho de uma borboleta-cauda-de-andorinha, mas quando se trata de abelhas e moscas, distinguir espécies torna-se muito mais difícil, mesmo para os investigadores mais experientes. Acresce ainda que a identificação é um processo moroso, que implica observar detalhes morfológicos de animais muito pequenos à lupa, um indivíduo de cada vez…
Como podemos, então, enfrentar a crise de diversidade que vivemos, se nem conseguimos distinguir as diferentes espécies?
Felizmente, as novas tecnologias estão a revolucionar este campo, permitindo avanços extraordinários na identificação e monitorização dos polinizadores. Atualmente, destacam-se duas abordagens principais: ferramentas moleculares baseadas em ADN e ferramentas de análise de imagem.
Códigos de barras de ADN
Imagine que cada animal poderia ter um “cartão de identificação” único. Embora esse cartão mágico não exista, todos os animais carregam nas suas células o ADN, onde estão guardadas as suas informações genéticas que os tornam distintos de todos os outros. O método conhecido como “códigos de barras de ADN” usa pequenas sequências de ADN para identificar rapidamente cada espécie, tal como fazemos com os códigos de barras dos produtos num supermercado. Desenvolvido no início do século XXI pelo Professor Paul Herbert da Universidade de Guelph, é atualmente utilizado em todo o mundo.
Os “códigos de barras de ADN” de mais de 360 mil espécies estão documentados numa base de dados global (BOLD SYSTEMS). Em Portugal, conhecem-se os “códigos de barras de ADN” de mais de 56.000 indivíduos pertencentes a mais de 7000 espécies. Destes, mais de 35.000 são insetos.
A iniciativa IBI (InBIO Barcoding Initiative), que celebra agora 10 anos, da Rede de Investigação em Biodiversidade e Biologia Evolutiva, reúne investigadores portugueses e estrangeiros. O principal objetivo desta iniciativa é construir uma biblioteca de “códigos de barras de ADN”, com especial foco nos invertebrados, complementando assim as bases de dados genéticas a nível mundial. Ao longo da última década, a IBI já documentou diversos grupos de polinizadores, incluindo muitas abelhas, diversos grupos de moscas e mais de um milhar de borboletas noturnas. Este trabalho levou, inclusive, à descrição de várias espécies novas para a ciência. O processo envolve a colaboração de especialistas em taxonomia, que identificam os indivíduos com base na sua morfologia. Posteriormente, são associadas a esses indivíduos as respetivas sequências de “códigos de barras de ADN”, permitindo uma identificação genética rigorosa.
Estas bibliotecas de referência estão em atualização contínua e fazem parte do maior projeto europeu ligado à genómica para estudar a biodiversidade, “Genómica da Biodiversidade da Europa” (em inglês, Biodiversity Genomics Europe – BGE), do qual o CIBIO-InBIO é o parceiro português.
ADN metabarcoding: uma “sopa” de códigos de barras de ADN
Uma vez estabelecidas as bibliotecas de referência com “códigos de barras de ADN”, abre-se um mundo de possibilidades para monitorizar a biodiversidade de forma altamente eficiente. É aqui que se destaca o “ADN metabarcoding”, uma técnica inovadora que permite identificar simultaneamente múltiplas espécies a partir de uma única amostra recolhida no campo. Este processo começa com a extração do material genético dos organismos presentes na amostra, realizada de uma só vez. De seguida, procede-se à amplificação, que é o processo de gerar inúmeras cópias das regiões específicas de ADN – os tais “códigos de barras de ADN”. Este passo garante que tenhamos cópias suficientes dos “códigos de barras de ADN” presentes na amostra, permitindo a sua deteção e leitura na etapa seguinte – a sequenciação – que descodifica simultaneamente os “códigos de barras de ADN” gerados. Comparando essas sequências com as bibliotecas de referência, conseguimos identificar as espécies presentes nessa amostra. É esta a grande inovação do “ADN metabarcoding”, poupando-se tempo e recursos e permitindo-nos estudar e monitorizar a biodiversidade em tempo real.
Um exemplo prático é o projeto BGE, que recolheu amostras em jardins e áreas agrícolas de toda a Europa, incluindo Portugal, para perceber como estes habitats, com forte influência antropogénica, moldam as comunidades de polinizadores.
Inteligência Artificial para identificação de polinizadores
Recentemente, a inteligência artificial (IA) revelou-se uma poderosa aliada na identificação e monitorização de polinizadores. Projetos internacionais como a ação COST InsectAI (https://insectai.eu/) têm discutido e promovido o uso de algoritmos avançados para identificar automaticamente insetos através de imagens captadas em campo ou laboratório.
Câmaras automáticas instaladas em ambientes naturais permitem capturar imagens detalhadas dos insetos, possibilitando uma monitorização contínua e menos invasiva. Apesar dos desafios que ainda existem na identificação de espécies diurnas, devido à complexidade visual dos habitats naturais, às reduzidas dimensões dos organismos e ao seu comportamento de voo, os avanços tecnológicos têm sido rápidos e promissores. Destaca-se particularmente o potencial da IA na identificação através de imagens de espécimes museológicos e de borboletas noturnas capturadas por armadilhas luminosas, permitindo uma identificação rápida e precisa em muitas situações.
Os métodos acústicos têm também um grande potencial. Investigadores estão a explorar a análise dos sons produzidos pelos insetos, como o bater das asas, para identificar espécies. Apesar de ainda estarem em fase de desenvolvimento, estes métodos poderão complementar as abordagens visuais e genéticas, ajudando a reconhecer espécies difíceis de observar diretamente ou de amostrar.
Estas tecnologias inovadoras também incentivam a participação cidadã. Plataformas como o iNaturalist já utilizam IA para sugerir identificações dos organismos fotografados pelos utilizadores, permitindo que qualquer pessoa contribua ativamente para a conservação da biodiversidade enquanto aprende mais sobre estes pequenos guardiões das flores.
Com a combinação destas tecnologias e a colaboração entre cientistas e cidadãos, estamos cada vez mais próximos de conhecer, proteger e valorizar plenamente a incrível diversidade dos nossos polinizadores.
Sónia Ferreira trabalha, como investigadora, no centro de investigação CIBIO-InBIO. Nesta crónica também colaboraram, como autores, Andreia Miraldo e João Loureiro. Carolina Caetano assegurou a revisão do artigo. O texto foi ainda revisto por Inês Sequeira, da equipa da Wilder.