Os veados selvagens, que por estes dias se vêem com os seus pequenos “bambis”, são animais espantosos em cada dia das suas vidas, considera Paulo Catry. “Haja chão e território onde possam ser selvagens ainda.”
Montesinho, 10 junho 2022
Durante uma boa parte do século XX, o veado, o maior dos animais selvagens (terrestres) nacionais, esteve praticamente desaparecido de Portugal. Bem, havia sempre um ou outro grupinho nas Tapadas de Vila Viçosa e de Mafra, ou nalgum cercado privado, dirão alguns. Mas esses, para mim, não contam.
Será que um animal dito selvagem que mora dentro de um cercado ou de uma tapada é menos feliz que outro que vive cá fora em liberdade? Se o cercado for suficientemente grande, talvez nem note a diferença – difícil avaliar. Muitos cercados são mais pequenos do que isso, imagino.
Aos meus olhos, contudo, há toda a diferença do mundo entre o lado de dentro e o lado de fora do muro: só os animais que não estão confinados por cercas ou tapumes me fazem sonhar (máxima subjetividade, portanto), só esses me parecem selvagens.
Felizmente que depois de terem estado assim como que extintos, os veados recolonizaram e estão em franca recuperação. Pululam em liberdade em certas zonas, como por exemplo em partes da raia do Alentejo, da Beira Baixa, de Trás-os-Montes, ou na região da serra da Lousã onde foram reintroduzidos.
Ao mesmo tempo, continuam a crescer e a alastrar vedações altas (propositadamente à prova de veado) pelo interior do país. Fico estupefacto de saber que há clientes para “caçar” veados dentro de cercas onde lhes dão suplementos alimentares e lhes tolhem os movimentos. Dentro de cercas onde a densidade chega a ser tão elevada que impede a regeneração natural da vegetação. Se eu desfrutasse da natureza com uma espingarda não ia querer uma coisa assim, mas pelos vistos abundam caçadores que não se importam, há gostos para tudo.
Os veados podem proliferar e dar magníficos troféus em sítios completamente abertos e até em zonas com populações saudáveis de predadores naturais (os lobos), como acontece por exemplo perfeito na Sierra de la Culebra (em Espanha) e nos territórios adjacentes da Lombada, no Parque Natural de Montesinho.
Assim sendo, para que são as cercas? Dá a ideia de que servem para sublinhar o querer-se “possuir em exclusivo”, até a natureza. “Natureza” partidinha aos bocados, bem entendido. Podendo-se, também se fechavam as perdizes e, porque não, as rolas-bravas migradoras.
As cercas normais de gado não são um obstáculo para veados nem para nenhum outro animal selvagem. Que admirável é ver como, sem sequer tomarem balanço, os veados saltam – voam! – por sobre qualquer vulgar cerca de arame farpado. Às vezes até passam as redes à prova de veado, mas acontece pouco. O espantoso é que mesmo dentro de áreas classificadas, como no Parque Natural do Tejo Internacional (entre outras), se permite a continuação da construção de cercas altas, obstáculos que estilhaçam em bocados o habitat e o território que sem esse atentado poderia vir a ver o regresso de animais como os lobos (já estão perto – não há subjetividade nisto).
Enfim, tinha-me prometido que nestas crónicas não falaria de tristezas, como a da natureza cada vez mais fechada e inacessível… voltemos então às aguarelas.
Por estes dias, no Norte, os bambis começam a aparecer a quem os procura, acompanhando as mães pela frescura da manhã. Pintalgados, orelhudos, focinho brilhante, olhos negros, dão vontade premente de agarrar. Pequenos pernaltas saltitantes, não se atrevem muitos passos para além das progenitoras. Estas redobram a habitual vigilância, sempre atentas. Algumas juntam-se em pequenos grupos de mães e filhas para maior proteção. Os machos nesta época não querem saber; têm as hastes já crescidas, mas ainda cobertas de veludo; não lutam, nem ligam a crias ou ao sexo oposto.
Alguns daqueles veadinhos vão crescer e chegar a ser bestas possantes de 150 ou até mesmo 200 quilos munidas de pesadíssimas armações pontiagudas… e de um vozeirão de encher montes e vales no fim do verão. De bambis fofinhos a formidáveis guerreiros em poucos anos. Espantosos em cada dia das suas vidas. Haja chão e território onde possam ser selvagens ainda.
Saiba mais.
Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do Mare – Marine and Environmental Sciences Centre, Ispa – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais. E também os artigos publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.