Foto: Paulo Catry

Crónicas naturais: Joãozinho corvo

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O biólogo Paulo Catry conviveu nestes primeiros dias do ano com uns vizinhos curiosos, impertinentes, barulhentos. Fique a conhecer estas aves que parecem zombar de quem as estuda.

Falkland/Malvinas, Janeiro 2023

Uma aragem súbita do voo rasante aflorando a cabeça, veio de trás como habitualmente, vejo somente a ave que se afasta, mas neste caso dá uma volta ao largo e vem poisar com ar provocador mesmo a meu lado. Adolescente impertinente, o joãozinho corvo olha-me de frente, olhos nos olhos a escassos três metros de distância, depois revira completamente a cabeça e continua, com olhos trocados agora, parece divertido, mas não sorri sorriso que eu entenda, talvez sim na linguagem dele. Escarnecedor.  

Joãozinho corvo é tradução livre de um nome popular, o famoso johnny rook das Falkland, um carcará na verdade (o carcará-austral Daptrius [Phalcoboenus] australis), mas que em voo por vezes faz lembrar uma gralha ou um corvo, uma confusão de nomes para uma espécie de ave que nos baralha o entendimento. 

Quando é a brincar ainda vá, se tolerarmos a atitude zombeteira. Às vezes junto ao ninho batem-nos na cabeça com as patas, com o vigor de uma forte paulada seca, ou desaparecem-nos com o chapéu ou o gorro pela encosta da montanha. Dá vontade de lhes apertar o pescoço…

Carcará-austral num comportamento exploratório, pouco agressivo. Foto: Paulo Catry

E todavia, quando os apanhamos para um novo estudo agora em curso, ficam mansinhos feitos cordeiros, observam os procedimentos no seu próprio corpo como se não fosse com eles, anilhagem, recolha de amostra de sangue, esfregaço oral e cloacal. Andamos à procura de vírus e de outros parasitas.

São um bocado maiores que uma águia-de-asa-redonda, não são muito grandes nem exageradamente pequenos. Patas compridas e longas garras. Correm rápidos no chão, voam sem grandes proezas acrobáticas, quanto baste apenas para espalhar a sua presença ruidosa e perturbadora.

Carcará adulto. Foto: Paulo Catry

Os carcarás-austrais são praticamente desprovidos de medo, o que aliado a uma curiosidade insaciável faz deles das aves mais desconcertantes que se imagine. Para apanhá-los colocamos uma fita cor-de-rosa na ponta de uma vara e deixamos que flutue junto ao chão. Nem um minuto para logo o mais curioso dos joõezinhos, normalmente um imaturo com um ou dois anos de vida, vir debicar a fita. Não se julgue que vêm ao engano, provam, percebem que não é comestível, mas interessa-lhes a brincadeira e ali ficam. Levamos o joãozinho a perseguir a fita até ter os pés numa laçada, puxamos e já está, captura fácil. 

Mais um momento de exploração. Foto: Paulo Catry

Depois de processada a ave, vem o espanto. Soltamos e, em vez de voar espavorido, o joãozinho que involuntariamente contribuiu para a ciência fica logo ali, a sacudir as penas, a alisá-las com o bico, e logo volta a olhar para nós com curiosidade. Recomeçamos com a vara e o lacinho cor-de-rosa, a querermos apanhar mais bichos, mas várias vezes é o nosso joãozinho anterior que regressa ao isco, cheio de vontade de mais brincadeira! Não estão esfomeados, pelo contrário, esta época é farta e as aves exibem um papo cheio até quase rebentar, sem que isso lhes diminua o apetite pelas experiências da vida.

Casal junto do ninho ao nível do solo, na ilha de Beauchene. Foto Paulo Catry

A meio do verão austral aparecem as crias do ano nos seus primeiros voos. Encontramo-las em locais remotos destas ilhas perdidas. Nunca viram ninguém, não anda mais ninguém por aqui. Nem é precisa uma fita colorida. Basta sentarmo-nos no chão e colhermos uma palha qualquer que ali cresça. Com um jeito de dedos dança a espiga sobre a mão e já vem o joãozinho de garra estendida. Uma vez dei-lhe a ponta de uma luva, segurando com força pelo outro lado. Puxava ele, puxava eu, ele largava, estica a mão, segura a pata, crava a garra, ficámos nisto durante 10 minutos (nunca me atrevi a deixar-lhe a luva, não fosse fugir com ela). Cansei-me e depois de um puxão final afastei-me com o que me pertencia. Espreitando por sobre o ombro vi o joãozinho ainda parado, sempre a olhar, com ar triste do fim da brincadeira.

Juvenil acabado de sair do ninho, em Bird Island. Foto: Paulo Catry

Estes carcarás são globalmente muito escassos, vivem apenas em ilhas remotas nas Falkland e em redor da Terra do Fogo. Especializaram-se em viver das colónias de aves (pinguins diversos, corvos-marinhos, albatrozes) e de mamíferos marinhos (lobos, leões e elefantes marinhos). São predadores e necrófagos. Tanto capturam uma cria de pinguim como um painho adulto, ou aproveitam a placenta já inútil depois de um leão-marinho ter nascido. Quando a fome aperta, de inverno, podem comer dejetos de lobos-marinhos ou esgravatar larvas de insetos que se escondem sob a erva. Qualquer animal morto, baleia ou ganso selvagem, é motivo para um festim.

Um carcará entre vizinhos. Foto: Paulo Catry
Arreliador. Foto: Paulo Catry

São territoriais na época de reprodução, tanto nidificam numa pequena escarpa como por entre um tufo de erva alta, abrigados dos ventos fortes. Opcionalmente, para a reprodução, em vez de formarem pares organizam-se em trios, mas é solução pouco frequente. Os imaturos andam em bandos de rufias, quando nos rodeiam chegam para intimidar quem não tenha o hábito de aves corpulentas em grande número.

Reunião de gang, na ilha de Steeple Jason. Foto: Paulo Catry

Não é novidade que há corvídeos brilhantes e papagaios geniais, mas estas aves de rapina da família dos falcões são menos conhecidas. O que é que faz uma ave ter curiosidade e querer experimentar e brincar? Talvez seja o fruto da necessidade. Se de verão os joõezinhos encontram colónias cheias de alimentos variados, o inverno rigoroso destas latitudes, quando a maioria das aves e focas partiram para o mar, deve ser difícil de encarar. Resta aproveitar todas as oportunidades, explorar, experimentar, puxar pela cabeça, sobreviver. 


Saiba mais.

Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do Mare – Marine and Environmental Sciences Centre, Ispa – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais. E também os artigos publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.

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