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As estratégias das plantas: crescer entre o asfalto e o betão

17.07.2025

À primeira vista, as cidades parecem ter lugar para tudo, menos para as plantas. O betão, o alcatrão, os muros e as calçadas dominam o espaço. O solo é escasso ou ausente, o calor acumula-se no asfalto, a água desaparece rápido e a pressão humana é constante. Ainda assim, as plantas não desistem, crescem onde menos se espera, entre as pedras e as fissuras, encontrando formas engenhosas de sobreviver.

Sobreviver à cidade, sem pedir licença

Crescer entre o betão e as pedras exige mais do que sorte — implica adaptação. A flora espontânea que coloniza fendas, muros e outros recantos urbanos não só tolera condições difíceis, como explora essas dificuldades para garantir o seu lugar. 

Chamamos-lhes “ervas”, muitas vezes com desprezo, mas são verdadeiras pioneiras, adaptadas à hostilidade do espaço urbano. Quando o solo é escasso e a água desaparece com facilidade, estas plantas engenhosas usam o que têm ao seu dispor. Aproveitam o calor dos muros para germinar mais cedo, desenvolvem raízes finas e flexíveis, capazes de se fixar e alimentar mesmo em poucos centímetros de solo. 

Alfavaca-de-cobra (Parietaria judaica). Foto: Krzysztof Ziarnek, Kenraiz/WikiCommons

Muitas são anuais e completam o ciclo de vida em poucas semanas. Outras, perenes, criam redes subterrâneas persistentes, que regressam ano após ano, como um coração que não desiste de bater. 

Dou muitas vezes por mim a reparar nestas pequenas plantas que rompem o betão ou que se insinuam nas fendas dos passeios e dos muros.  Discretas, quase invisíveis, mas determinadas.

Há anos que vejo algumas regressarem, sempre aos mesmos lugares, uma companhia silenciosa no meu percurso habitual. Um bom exemplo é a alfavaca-de-cobra (Parietaria judaica), uma planta nativa que cresce em muros e consegue sobreviver em condições de pouca água e nutrientes.

A cimbalária (Cymbalaria muralis) também é uma presença constante. Apesar de não ser uma espécie nativa, tornou-se parte da paisagem. Resiste bem à seca e às mudanças bruscas de temperatura. Forma um tapete verde que cobre o muro e as suas pequenas flores, quase imperceptíveis, acrescentam cor aos recantos de pedra. 

Cimbalária (Cymbalaria muralis). Foto: Angelika Baumann/WikiCommons

Plantas da cidade

Pequenas plantas, muitas vezes anónimas, crescem onde não foram convidadas. Ninguém as semeou, ninguém as plantou, e muitas vezes, ninguém as quer ali. Mas surgem mesmo assim, aproveitando o vento, a chuva ou os animais para dispersar sementes e encontrar refúgio. 

Instalam-se em fendas de muros, entre pedras soltas, calçadas e passeios, locais onde quase nada mais vinga e aí prosperam, fazendo das dificuldades urbanas uma oportunidade.

Espécies como o umbigo-de-vénus (Umbilicus rupestris), que forma pequenas rosetas bem agarradas a superfícies húmidas, são-me familiares: aparece todos os anos no mesmo muro, na mesma escada por onde passo todos os dias. 

Umbigo-de-vénus (Umbilicus rupestris). Foto: Krzysztof Ziarnek, Kenraiz/WikiCommons

A boca-de-lobo (Antirrhinum majus), com as suas flores coloridas, desponta de tempos a tempos nos muros perto de casa, trazendo cor ao cinzento das pedras. 

A papoila (Papaver rhoeas), de pétalas frágeis, escolhe os sítios mais improváveis: fissuras junto a passadeiras, bermas de caminhos, recantos esquecidos no meu trajeto a pé para o trabalho. 

O dente-de-leão (Taraxacum officinale), mais discreto, também resiste entre o empedrado, como se recusasse ser esquecido. 

A salsaparrilha (Smilax aspera), uma trepadeira robusta, cobre muros e outra vegetação, acrescenta diversidade a estes ambientes urbanos.

Nos telhados e zonas mais expostas, surge o arroz-dos-telhados (Sedum album), uma suculenta que se destaca pela sua capacidade de armazenar água e resistir a ambientes secos e quentes, comuns nas cidades, onde há forte exposição solar e pouca retenção de humidade.

É impossível não parar, nem que seja por um segundo, para observar esta persistência em crescer nos lugares mais inóspitos. 

Além das plantas com flor, musgos, fetos e líquenes colonizam pedras e paredes, integrando o ecossistema urbano. Discretos, estes seres vivos revelam uma incrível capacidade de adaptação.

Vantagens invisíveis

Mesmo que passem despercebidas, estas presenças — das plantas com flor, aos musgos, fetos e líquenes – são fundamentais para o equilíbrio ecológico das cidades. Além da sua notável resiliência, desempenham funções ecológicas que sustentam a vida nas cidades. Alimentam polinizadores e pequenos animais, contribuem para o equilíbrio do microclima e ajudam a estabilizar solos, mesmo nos espaços mais reduzidos e inóspitos.

Arroz-dos-telhados (Sedum album). Foto: Liv/WikiCommons

Destacando-se como bioindicadores da qualidade do ar, os líquenes e os musgos, também contribuem para criar microhabitats, prevenir a erosão e participam no ciclo dos nutrientes – funções importantes para a manutenção da biodiversidade urbana.

Estas comunidades, espalhadas pelas calçadas, muros, passeios e telhados, funcionam como verdadeiras pontes verdes, ligando fragmentos de natureza urbana. Facilitam a circulação de pequenos organismos, a dispersão de sementes e tecem redes vivas que sustentam processos naturais mesmo nas grandes cidades.

Além disso, contribuem para a melhoria da qualidade do ar ao reter partículas poluentes e, ao cobrirem superfícies duras, atenuam o ruído e ajudam a regular a temperatura local – funções cada vez mais importantes face às alterações climáticas. 

A sua presença suaviza os efeitos das ilhas de calor e torna a cidade mais resiliente a fenómenos extremos. Não será por acaso que sentimos mais frescura ao passar por certos muros cobertos de vegetação.

Por fim, há um valor simbólico e estético que não pode ser ignorado: estas espécies, muitas vezes consideradas indesejadas, rompem o betão com cor, vida e persistência, lembrando-nos que a natureza não desaparece. Adapta-se, resiste e insiste em regressar, mesmo nos lugares mais improváveis.

A lentidão que desafia

Mas a força destas plantas não está apenas na sua capacidade de resistir ao meio urbano — está também na paciência com que o fazem.

Enquanto a vida urbana corre a passos acelerados, elas seguem um ritmo completamente diferente: crescem devagar, ano após ano, construindo raízes profundas e estruturas discretas, que poucos notam, mas que fazem toda a diferença. 

Essa lentidão não é sinal de fraqueza, é uma estratégia de sobrevivência. Ao resistirem ao pisoteio, à seca e ao calor, acumulam lentamente reservas e preparam-se, com firmeza, para os desafios futuros.

Além disso, o seu crescimento lento ajuda a criar estabilidade nos espaços onde vivem. As suas raízes, por exemplo, estendem-se entre pedras e fissuras com delicadeza e firmeza, ajudando a manter o solo e as estruturas intactas.

Tornam-se arquitetas silenciosas da cidade, moldando microambientes e preparando o terreno para outras formas de vida.

Essa capacidade de persistir lentamente, quase invisível ao olhar apressado, é um lembrete importante: na natureza, o tempo não é um inimigo, mas um aliado. A lentidão destas plantas urbanas desafia a pressa e a imposição humana, mostrando que a verdadeira resistência muitas vezes se constrói no ritmo calmo e constante da vida.

Dente-de-leão (Taraxacum officinale). Foto: Thomas Wolf/WikiCommons

Num mundo cada vez mais apressado, impermeável e afastado da natureza, estas plantas que crescem entre pedras e muros oferecem-nos uma lição profunda. 

A forma discreta como se instalam com naturalidade, sem exigir nada, revela outra forma de habitar o espaço, mais atenta, mais paciente, mais resiliente.

Ao surgirem nas fendas do betão, estas espécies espontâneas mostram que a natureza não precisa de grandes territórios para se manifestar. Basta-lhe uma pequena fissura, um pouco de luz, uma gota de água. E assim, relembram-nos que o mundo natural permanece presente, mesmo quando tentamos esquecê-lo ou apagá-lo.

Reconhecer o valor destas plantas é mais do que um gesto ecológico, é um reencontro com a natureza que resiste, discreta nos cantos esquecidos das cidades. 

É lembrar que a beleza também surge nos locais mais inesperados e que cuidar começa por ver.

Aprendi a reconhecê-las quase sem querer. Primeiro com curiosidade, depois com respeito. Hoje, não passo sem as procurar.


Carine Azevedo é Mestre em Biodiversidade e Biotecnologia Vegetal, com Licenciatura em Engenharia dos Recursos Florestais. Faz consultoria na gestão de património vegetal ao nível da reabilitação, conservação e segurança de espécies vegetais e de avaliação fitossanitária e de risco. Dedica-se também à comunicação de ciência para partilhar os pormenores fantásticos da vida das plantas. 

Para acções de consultoria, pode contactá-la no email [email protected]. E pode segui-la também no Instagram.


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