A migração do maçarico-de-bico-direito, que tem o estuário do Tejo como local de repouso e invernada, está a ser estudada à lupa por uma equipa internacional liderados pelo centro de investigação CE3C, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. A Wilder falou com a equipa e conta-lhe o que está em causa.
Num artigo publicado agora pela revista científica Journal of Applied Ecology, estes investigadores fazem o mapa das zonas húmidas e dos territórios de que dependem os maçaricos-de-bico-direito (Limosa limosa) durante as longas migrações que realizam pela rota do Atlântico Este, que inclui o estuário do Tejo em Portugal.
A equipa de 40 cientistas de 12 países diferentes concluiu que esta ave limícola liga entre si mais de 1000 zonas húmidas ao longo da rota do Atlântico Este, desde os locais onde nidifica na Islândia e noutros países do Norte da Europa até à Guiné-Bissau e outros países africanos, para onde voa para escapar ao frio.
“Portugal é um dos países que acolhe os bandos de aves vindos do Norte entre novembro e março, chegando a contar-se mais de 50.000 indivíduos no estuário do Tejo”, descreve uma nota de imprensa sobre o novo estudo, que lança um alerta: “Outrora, os números alcançavam perto do dobro e o segredo do seu declínio pode estar nas ameaças que enfrentam nos locais que visitam ao longo da sua migração.”
Estes maçaricos, que podem ser observados de novembro a março às portas de Lisboa, pertencem a duas populações diferentes. “A primeira nidifica principalmente na Islândia e passa o inverno no sul da Inglaterra, na costa atlântica de França e na Península Ibérica (são da subespécie Limosa limosa islandica). A segunda população nidifica na Europa continental (entre Inglaterra e Rússia), com maior concentração nos Países-Baixos (subespécie Limosa limosa limosa), e passa pela Península Ibérica a caminho dos países da África Ocidental, como Mauritânia, Senegal, e a Guiné-Bissau, entre outros”, explicaram à Wilder os investigadores que lideraram o estudo, Martin Beal e Maria Dias. Ambos estão ligados ao CE3C – Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
Contas feitas, os maçaricos que visitam o Tejo “usam também mais de 300 outras zonas húmidas, em 25 países da Europa e África”, acrescentam Martin e Maria, que ficaram surpreendidos com a quantidade de conexões de alguns sítios, incluindo do maior estuário português. “Já se sabia bastante sobre a rota de migração do maçarico-de-bico-direito, mas não fazíamos ideia da magnitude desta conectividade, e ver estas ligações ao pormenor é realmente impressionante. Além do Tejo, identificámos outros 48 sítios de ‘topo’, de entre os mais de 1000 que são usados pelas aves – são verdadeiros ‘hubs’ na sua rota migratória.”
Os desafios da conectividade ecológica
Esta intrincada rede da rota do Atlântico Este, que foi agora desvendada mais em detalhe, está relacionada com o conceito de “conectividade ecológica”, ou seja, “a ligação entre habitats utilizados por uma determinada espécie, que tem estado a crescer em importância no mundo da conservação da biodiversidade”, dizem os dois cientistas.
“Este conceito é importante porque a gestão de uma determinada área pode ter repercussões na biodiversidade existente em muitas outras áreas com as quais essa área está “conectada” através do movimento dos animais. Nós queríamos de alguma forma contribuir para o desenvolvimento e aplicação deste conceito no mundo de conservação de aves migratórias”, sublinham.
Um dos exemplos de como os desafios num único local podem afetar uma espécie migratória em locais distantes foram os planos para a construção do aeroporto de Lisboa na área do estuário do Tejo, que teriam tido um impacto sério para o maçarico-de-bico-direito, recorda Martin Beal. Para já, estas e outras aves limícolas enfrentam aqui outras ameaças, em especial a expansão urbana e o aumento de perturbação.
A equipa de investigadores está agora a estudar quais serão as melhores formas de assegurar a conservação de aves migratórias como este maçarico. Tanto a conservação como a inversão do declínio de muitas espécies “dependem da cooperação internacional”, sublinha Maria Dias, mesmo que os desafios possam ser diferentes de local para local. Existem por exemplo áreas no mundo, como a região do Baixo Casamanga, no Senegal, onde os sapais, mangais e arrozais frequentados pelos maçaricos – provenientes de pelo menos outros oito países – não têm qualquer proteção formal. Nos locais onde a espécie nidifica, como a Islândia, foram identificadas também outras ameaças, como a intensificação agrícola e o aumento do número de predadores.
Anilhas e aparelhos GPS
Para reconstituírem as longas viagens do maçarico-de-bico-direito na rota do Atlântico Este, os investigadores recorreram aos dados provenientes de diferentes projetos que tê estudado a espécie ao longo dos últimos anos.
Em primeiro lugar, a equipa analisou mais de 260.000 observações de mais de 9000 destes maçaricos marcados com anilhas coloridas colocadas nas patas destas aves, que foram observadas em 46 países diferentes. “Esta informação toda representa o trabalho de dezenas de pessoas para capturar, anilhar, e depois observar os animais no campo através de telescópios e câmaras”, adiantam os dois investigadores. O estudo envolveu colaboradores de 13 projetos de anilhagem em nove países diferentes, incluindo Portugal.
Por outro lado, foram analisados dados de mais de 400 maçaricos seguidos por satélite, através de pequenos aparelhos GPS colocados nas aves. “Estes dados foram recolhidos ao longo dos últimos 15 anos por várias equipas diferentes, no desenvolvimento de diversos projetos, frequentemente com recurso a redes de anilhagem ou a outros métodos de captura, sempre devidamente autorizados”, recordam. “O que fizemos foi compilar toda esta informação já existente, para ver o panorama geral.”
Para o futuro, esta equipa pretende estudar mais em detalhe os riscos que estas aves enfrentam nos vários locais que utilizam ao longo da migração, e de que forma esses desafios poderão comprometer a qualidade de outros sítios com os quais estejam conectados. “Por exemplo, quais as consequências, para outras zonas húmidas da Europa e da África, da perda de qualidade de habitat no Estuário do Tejo?”, questionam Martin Beal e Maria Dias. “Queremos também alargar esta abordagem a outras populações de aves migratórias, sobretudo limícolas, muitas das quais já se encontram em declínio.”