Sara Costa dá-nos a conhecer esta grande ave que está Criticamente Em Perigo de extinção em Portugal e fala-nos do seu retorno ao território nacional.
Em 2022, o relatório Estado das Aves do Mundo 2022 demonstrou que 49% das espécies de aves em todo o mundo enfrentam declínios populacionais, sendo que apenas uma pequena percentagem (6%) apresenta um crescimento da sua população.
A nível europeu, e de acordo com a Lista Vermelha Europeia de Aves 2021, uma em cada cinco espécies de aves estão classificadas como ameaçadas, ou quase ameaçadas de extinção. Num universo de 544 espécies avaliadas, 71 (13%) encontram-se em risco. No que respeita aos abutres, estes não são exceção a esses declínios e enfrentam, nos dias de hoje, diversas ameaças que colocam em causa a sua sobrevivência.
O grifo (Gyps fulvus), o abutre-preto (Aegypius monachus) e o abutre-do-egito (Neophron percnopterus) são os abutres que encontramos em Portugal. Os dois últimos encontram-se em risco, estando o abutre-preto classificado como Criticamente em Perigo de extinção no nosso território, de acordo com o Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal.
O imponente abutre-preto
Sendo a maior ave de rapina da Europa e uma das maiores do mundo, o abutre-preto pode chegar aos 3 metros de envergadura. Caracteriza-se por uma plumagem escura (igual em ambos os sexos e mais escura nos indivíduos jovens), unhas pretas e cabeça nua de cor cinzento-clara. O livro Aves de Portugal e Europa explica-nos a semelhança deste animal com o grifo, que se distingue pela plumagem escura e uma cauda mais comprida e arredondada.
Sendo um animal maioritariamente necrófago – ou seja, que consome biomassa em decomposição -, alimenta-se de carcaças e restos de animais mortos. Quando surge a oportunidade de se alimentar, e apesar de ser uma ave solitária, é frequentemente avistado com o grifo, acabando por conseguir ser o primeiro a usufruir da refeição. Após o declínio das populações de coelho, que constituíam a sua principal fonte de alimento, a dieta do abutre-preto passou a ser à base de gado ovino e caprino.
O abutre-preto mantém uma relação longa, em muitos casos durante a vida toda, com o seu parceiro. Nidifica no topo das árvores, reutilizando os seus ninhos de ano para ano. Durante largos períodos do dia, podemos observá-lo a planar em voo circular, em zonas montanhosas isoladas e arborizadas, constituindo estes territórios as suas zonas de eleição. Habita as florestas mediterrânicas e as áreas montanhosas do Centro e Sul da Península Ibérica e Ilhas Baleares.
Em Portugal, podemos encontrar o abutre-preto entre a Beira Baixa e o Baixo Alentejo, existindo quatro núcleos reprodutores desta espécie. O Tejo Internacional, a região com a maior colónia, contava com 24 casais em 2020.
Quando o céu deixou de ser o limite…
Durante várias décadas, o envenenamento de predadores e o uso de pesticidas para controlo de ervas daninhas afetaram indiretamente os necrófagos. No final de 1970, quando esta prática já tinha sido proibida, o abutre-preto já se encontrava em forte declínio, sendo que no final do século XX já não nidificava em Portugal.
Mauro Hernández e Antoni Margalida apontam o uso ilegal de pesticidas como a principal ameaça à sobrevivência deste grande abutre e à recolonização de antigas áreas de distribuição, uma situação que afeta maioritariamente os indivíduos adultos.
O diclofenac é outra ameaça que a espécie enfrenta. Este anti-inflamatório usado para tratamento de gado provoca insuficiência renal nos abutres, que morrem até dois dias após ingerirem as carcaças dos animais tratados com o mesmo. Esta situação provocou danos drásticos na Índia, reduzindo as populações de abutres em mais de 97% e levando estas aves quase à sua extinção, tendo sido por isso banido em 2006 no subcontinente indiano. Em 2020, foi registada a primeira vítima derivada da ingestão deste anti-inflamatório na Europa, com a morte de um abutre-preto em Espanha.
Em 2017, após um pedido de autorização para o uso de um medicamento veterinário contendo diclofenac em Portugal, diversas associações lutaram contra a situação, que colocou em causa todos os esforços de conservação até à data. A Quercus – Associação Nacional de Conservação da Natureza afirma que existem “várias alternativas a este fármaco, e com muito menor impacto, pelo que o tratamento de espécies pecuárias é atualmente perfeitamente possível sem recorrer ao uso do diclofenac e de uma forma segura para as aves necrófagas”.
Para além do uso ilegal de pesticidas e da intoxicação provocada pelo diclofenac, existem outras ameaças que colocam em causa a sobrevivência do abutre-preto em Portugal, nomeadamente a colisão com postes e linhas elétricas. Estima-se que em média ocorrem quatro acidentes desta natureza por ano.
A alteração do habitat é outro problema relevante, uma vez que a destruição de florestas, os fogos florestais, as espécies exóticas invasoras e a extração de madeira alteram negativamente as zonas de reprodução do abutre-preto. Adicionalmente, a escassez de alimento, a instalação de parques eólicos nas zonas de nidificação, a expansão agrícola e a perturbação humana são outros fatores a considerar.
Asas de esperança
Recentemente, abriu-se uma janela de oportunidade para o abutre-preto em Portugal. Em 2010, a espécie voltou a nidificar em território nacional, quando dois casais chegaram ao Parque Natural do Tejo Internacional.
Passados dois anos, deu-se a chegada do primeiro casal de abutres-pretos ao Parque Natural do Douro Internacional (PNDI); mais tarde, após a construção de ninhos artificiais na zona, esta área protegida junto à fronteira recebeu o segundo casal em 2019. E um ano mais tarde, em 2020, a associação Palombar – Conservação da Natureza e do Património Rural anunciou o registo de oito indivíduos no PNDI, através de armadilhagem fotográfica. Uma explicação para a chegada desta espécie ao Douro Internacional será o abandono dos campos agrícolas no interior de Portugal, que foram substituídos por pastagens de criação de gado. A recuperação destes ecossistemas trouxe de volta a fauna selvagem, como o corço (Capreolus capreolus) ou o javali (Sus scrofa), abrindo condições propícias ao abutre-preto.
Ainda em 2015, este grande abutre voltou também a reproduzir-se no Alentejo – onde tinha deixado de nidificar há 40 anos – numa herdade em Moura, a Herdade da Contenda. E já em finais de 2021, a Rewilding Portugal confirmou uma nova colónia desta espécie na Reserva Natural da Serra da Malcata, que conta com diversos casais com sucesso reprodutivo, fazendo desta área protegida o terceiro maior núcleo reprodutor da espécie em Portugal.
Apesar destes registos positivos, os esforços de conservação são fundamentais. O LIFE Aegypius return – consolidação e expansão da população de abutre-preto em Portugal e no Oeste de Espanha é um projeto com duração prevista até 2027, que procura “consolidar e expandir a população de abutre-preto em Portugal e no Oeste de Espanha”.
Este projeto pretende melhorar o estatuto de conservação do abutre-preto, passando de Criticamente em Perigo para Em Perigo em Portugal, através da aceleração da recolonização natural e da melhoria dos habitats. Tem ainda como objetivo duplicar a população reprodutora de 40 pares distribuídos por quatro colónias para pelo menos 80 pares em cinco locais.
Uma espécie essencial para a nossa saúde
Os abutres são fundamentais para manter um equilíbrio funcional nos ecossistemas. Fruto da sua capacidade de eliminar substâncias nocivas do meio ambiente, conseguem evitar a sua propagação ao longo das cadeias tróficas alimentares, impedindo assim prejuízos na vida selvagem, na saúde humana e na economia. Segundo um artigo da National Geographic, quando ocorreu o declínio populacional de abutres na Índia, a população de cães selvagens cresceu rapidamente, trazendo consigo um surto de raiva. Estima-se que esse surto levou à morte de 50.000 pessoas, provocando custos de saúde pública de 34 bilhões de dólares.
Para além disso, as carcaças podem estar infetadas por vírus e doenças graves, tendo o sistema digestivo dos abutres uma grande capacidade de os aniquilar. “Sem uma população de abutres saudável, toda a cadeia alimentar e as populações humanas poderiam ser expostas a esses patogénicos e toxinas”, acrescenta a revista.
Sara Costa é recém-licenciada em Ciências do Ambiente pela Universidade do Minho.