Paulo Tenreiro, 49 anos, anda sempre com dois amuletos nas sessões de anilhagem: um alicate antigo e um pau-de-subir-redes. Desde 1993 que este vigilante da natureza na região de Coimbra é anilhador certificado de aves selvagens. É também das pessoas que em Portugal mais exerce esta actividade – em 2012 colocou 7.106 anilhas suas, fora as acções organizadas por grupos – e assegura que é possível conciliar esta ocupação com o trabalho e a vida familiar.
Esta entrevista faz parte de uma série de trabalhos sobre anilhagem, que a Wilder vai publicar durante as próximas semanas.
Wilder: Quando e como nasceu o seu interesse pela anilhagem de aves?
Paulo Tenreiro: Surgiu quando assisti a uma sessão de anilhagem realizada na Reserva Natural do Paul de Arzila, em 1991, onde foram credenciados como anilhadores os biólogos Tiago Múrias dos Santos, Paulo Gama Mota e Francisco Coimbra, que na altura estavam a iniciar o estágio da licenciatura.
Foi uma surpresa para mim verificar os pormenores da plumagem, com as aves na mão, diferente do que estava habituado a observar pelos binóculos, e também a surpresa ou prazer da captura, como queiramos chamar.
Wilder: E como se realizou a formação como anilhador certificado?
Paulo Tenreiro: Dado que a formação implica a participação em sessões de anilhagem, tentei frequentar as sessões que George Stilwell promovia em Montemor-o-Velho. Mas a parte principal da minha formação foi obtida na Reserva Natural das Lagoas de Santo André e da Sancha, onde são organizadas campanhas anuais de anilhagem de aves migradoras.
Comecei a passar aí as minhas férias, quer durante a minha formação, quer depois de me tornar anilhador credenciado, o que sucedeu em 1993. Foi neste local que conheci os anilhadores que foram fulcrais na minha formação, como o António Araújo, o Michael Armelin e principalmente o Pete Fearon.
Wilder: O que representa a anilhagem para si?
Paulo Tenreiro: Junho é talvez o mês mais difícil para os anilhadores. Quando amanhece pelas 05h10, tenho de me levantar duas horas antes para ter todo o meu equipamento montado nessa altura. E cheguei a ter de o fazer duas, três ou mais vezes por semana. Quando o despertador tocava, por vezes sentava-me na cama ainda às escuras, sentindo a minha mulher a dormir, e perguntava-me: “Porquê?”. Porque me levantava tão cedo? Porque fazia aquilo? Possivelmente, porque tenho uma imensa curiosidade sobre os mistérios que as aves transportam.
Wilder: Quais são os seus locais preferidos para uma sessão de anilhagem?
Paulo Tenreiro: O Paul da Madriz, situado no concelho de Soure [distrito de Coimbra], porque foi aí que iniciei a minha vida profissional e, principalmente, por ter sido onde comecei a anilhar de uma forma periódica e com objetivos traçados a longo prazo. Mas vivi momentos especiais em 2013 e 2014, nas Desertas (arquipélago da Madeira), e nos últimos anos na Reserva da Faia Brava (em Figueira de Castelo Rodrigo).
Wilder: Quais são os materiais que não dispensa numa sessão de anilhagem e para que servem?
Paulo Tenreiro: Era conhecido pelo Paulo dos Caixotes, por levar tudo atrás de mim. Até uma televisão cheguei a levar, para uma sessão de captura e anilhagem de limícolas que foi realizada no Estuário do Mondego no dia 11 de Setembro de 2001 – por motivos compreensíveis, dada o acontecimento marcante que tinha ocorrido nesse dia.
Mas fugindo à descrição do material de captura, livros, anilhas e até do caixote com material para reparações rápidas, levo sempre comigo um alicate muito antigo, que não deixo ninguém utilizar por ser uma peça quase única, e ainda um especial ‘furling-stick’ ou pau-de-subir-as-redes, que é substituído a cada dez mil aves anilhadas e que todos sabem que não lhe podem mexer. Posso dizer que funcionam como amuletos, com os quais me sinto bem se estiverem por perto.
Wilder: Tem um ou mais ‘bogey birds’ (aves que já gostaria de ter observado e/ou anilhado e ainda não o fez)? Ou que já o tenham sido mas recentemente deixaram de o ser?
Paulo Tenreiro: Não tenho aves que tenha identificado como um alvo a anilhar. Algumas aves que capturei ao longo da minha vida de anilhador, muitas de ocorrência rara em Portugal, sempre deixei que formandos ou outros anilhadores as anilhassem – sem me preocupar grandemente se as voltaria a capturar um dia. É um facto que nunca mais capturei algumas, como o Ficedula parva [Papa-moscas-pequeno], ou só passados 20 anos, caso do Regulus regulus [Estrelinha-de-poupa].
Mas existe uma espécie que se tornou tema de uma brincadeira com um velho amigo, o Pete Fearon, e que é a Certhia familiaris [Trepadeira-do-norte]. Esperava eu anilhá-la numa deslocação que fiz a Inglaterra, mas todos os indivíduos que foram capturados já estavam anilhados. Este facto é por mim sempre lembrado ao Pete, quando lhe possibilito a anilhagem de espécies que ele nunca anilhou. E é um desafio para regressar novamente a Inglaterra num futuro próximo.
Wilder: Está registado como o anilhador credenciado que mais aves anilhou em 2012, em Portugal (total de 7.106, segundo o último relatório da Central Nacional de Anilhagem). Como é que conjuga essa actividade com a vida profissional e pessoal?
Paulo Tenreiro: Durante muito tempo mantive em funcionamento estações de anilhagem de esforço constante, em áreas protegidas da zona centro do país, e este trabalho era feito dentro das minhas atribuições profissionais. No presente, os trabalhos que desenvolvo em que é necessária a captura e anilhagem de aves são feitos maioritariamente nos meus tempos livres, principalmente acompanhando outros anilhadores, sempre conciliando com a vida profissional e familiar. Costumo dizer que se consegui levar a minha esposa poucos dias após o nosso casamento a abdicar de continuar com uma lua-de-mel mais tradicional, e a optarmos por participar na campanha de anilhagem de aves migradoras em Santo André, consegue-se conciliar tudo.
Wilder: Ao longo do percurso como anilhador, qual é a captura que mais gosta de lembrar?
Paulo Tenreiro: Gosto de lembrar a única vez que anilhei um Monticola solitarius [Melro-azul]. Em 2000, estava na zona da barragem de Santa Luzia – Pampilhosa da Serra, juntamente com o Carlos Carvalho, a fazer trabalho de campo para o Segundo Atlas das Aves Nidificantes em Portugal. Como era habitual, a viatura estava cheia de caixotes com material, além de um fogão e de uma mala térmica com comida. Estacionámos na beira da estrada e começámos a preparar o almoço. “Pelo sim pelo não, ó Carlos, enquanto descascas a cebola, eu monto aqui duas redes nestes matos”, disse eu.
Nada foi capturado até ao final do almoço, até que observei no topo da encosta uma ave, que devido à distância não consegui identificar. Levantou voo e foi deslizando ao longo da encosta, até conseguir perceber a espécie e ver que tinha acabado de cair na rede. Nunca tinha corrido tanto por cima de silvas e tojo, mas também nunca tinha rido tanto a anilhar uma ave até essa data.
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Para conhecer melhor e acompanhar a actividade de Paulo Tenreiro, pode consultar o site deste anilhador, aqui.