Foto: U. Schwarzer/Flora-On

O que procurar no Inverno: o samouco

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Carine Azevedo fala-nos desta espécie ecologicamente importante, que por estes dias começa a florescer, e que podemos encontrar tanto nos Açores e Madeira como em Portugal Continental.

O samouco (Myrica faya) é uma das espécies características da floresta Laurissilva, presente nos arquipélagos da Madeira e dos Açores, mas também ocorre naturalmente no território continental ao longo da costa, entre as regiões da Beira Litoral e Algarve.

Só que esta espécie vive num dilema: apesar de ser uma nativa importante no nosso país – tão importante que inspirou o nome de uma ilha – é também uma invasora preocupante noutras partes do mundo.

O samouco

O samouco é uma espécie da família Myricaceae, uma pequena família de plantas lenhosas, maioritariamente árvores ou arbustos de folhagem perfumada.

A esta família pertencem três géneros botânicos e pouco mais de 50 espécies, das quais 49 são aceites no género Myrica, uma no género Canacomyrica e uma outra no género Comptonia.

Foto: Krzysztof Ziarnek

A designação botânica da Myrica faya deriva do grego. O nome genérico Myrica deriva de myrike, nome grego para a tamargueira (Tamarix spp.), muito provavelmente por esta planta crescer em habitats semelhantes. O termo Myrica também poderá estar associado à fragrância das suas folhas, uma vez que myrike também significa “fragrância”. O termo faya alude à sua semelhança com uma Faia.

O samouco é também vulgarmente conhecido como faia-das-ilhas, faia-da-terra ou, simplesmente, faia.

Ainda que possua o mesmo nome comum “Faia”, esta espécie não deve ser confundida com a verdadeira faia (Fagus sylvatica), espécie da família Fagaceae, também uma espécie nativa com elevado valor florestal e amplamente utilizada como ornamental em parques e jardins.

O samouco é uma espécie de crescimento rápido, frequentemente com porte arbustivo, ainda que possa formar árvores de pequeno porte, até oito a dez metros de altura. No Açores chega a atingir os 20 metros ou mais.

Possui uma copa densa e é bastante ramificado desde a base. O tronco é curto, irregular e fortemente retorcido, os raminhos são castanhos e nodosos e a casca é cinzenta e rugosa.

As folhas são persistentes, simples, aromáticas, coriáceas e curtamente pecioladas. São pequenas, lanceoladas a oblanceoladas, cuneadas na base, verde-brilhantes na página superior, com a nervura central saliente e ligeiramente mais pálidas e finamente pontuado-glandulosas na face inferior. A margem das folhas mais jovens é serrada a crenada e, nas mais velhas, é ligeiramente mais ondulada.

Foto: Krzysztof Ziarnek/Wiki Commons

O samouco é uma espécie dióica, ou seja, as flores unissexuadas, femininas e masculinas, ocorrem em indivíduos diferentes, embora seja comum encontrar exemplares com flores femininas e masculinas separadamente na mesma planta.

A floração ocorre entre março e maio, sendo mais abundante entre março e abril nas ilhas atlânticas, e entre abril e maio no território continental.

As flores são nuas e surgem agrupadas em amentilhos. Os amentilhos masculinos ocorrem na extremidade dos ramos, têm dois a cinco centímetros de comprimento, são espiciformes e as flores são amarelo-esverdeadas. Os amentilhos femininos são menores, com um a três centímetros de comprimento, ovóides, e as flores são ligeiramente rosadas. Os amentilhos femininos formam glomérulos densos compostos por três a quatro flores, no entanto ficam entre as folhas, são menos visíveis e imperceptíveis.

O fruto é na verdade uma infrutescência subglobosa, constituída por inúmeras drupas carnudas e globosas, de aspeto áspero e ceroso, originado pela união de três a quatro flores femininas. Na fase inicial de formação o fruto é verde e à medida que amadurece assume tonalidades avermelhadas, ficando negro-purpúreo e lustroso quando maduro. Cada fruto tem de uma a quatro sementes. Uma planta adulta pode produzir até 20.000 sementes por ano.

Foto: Krzysztof Ziarnek/Wiki Commons

Uma árvore ecologicamente importante

O samouco é uma espécie nativa dos arquipélagos da Madeira, Açores e Canárias, e também ocorre naturalmente na região Litoral do Centro e Sudoeste de Portugal Continental.

Ocorre habitualmente em bosques de Laurissilva, matagais termófilos, barrancos e em dunas, mas raramente pode encontrar-se na orla ou no subcoberto de pinhais.

O samouco não tolera as geadas e o frio intenso. É uma planta de plena luz ou de meia sombra, que prefere ambientes com alguma humidade e climas suaves.

É pouco exigente do ponto de vista edáfico, podendo desenvolver-se em qualquer tipo de solo, ainda que tenha preferência por solos bem drenados e regularmente húmidos, mas sem encharcar.

Nas Regiões Autónomas desenvolve-se em terrenos vulcânicos e, no continente, cresce em solos arenosos ou derivados.

Esta pequena árvore é muito importante do ponto de vista ecológico. Os frutos são alimento para várias espécies de aves, principais responsáveis pela dispersão das suas sementes – dispersão zoocórica.

O pombo-torcaz-dos-açores (Columba palumbus azorica), subespécie endémica no arquipélago dos Açores do pombo-torcaz-europeu (Columba palumbus) é uma dessas espécies, que ao alimentar-se dos seus frutos contribui para a dispersão natural da espécie. O vento também contribui para a dispersão das sementes – anemocoria.

Pombo-torcaz-dos-açores (Columba palumbus azorica). Foto: Hobbyfotowiki/Wiki Commons

O samouco consegue colonizar meios inóspitos, onde a carência de nutrientes é elevada e limita o crescimento de outras plantas. Esta qualidade de adaptação a solos pobres deve-se à sua capacidade de fixação do azoto atmosférico.

Esta planta consegue, em associação com uma actinobactéria do género Frankia que forma nódulos nas suas raízes, fixar o azoto atmosférico, modificando rapidamente a fertilidade dos solos, permitindo assim a instalação de outras espécies vegetais e a acumulação de biomassa no solo.

A árvore que deu nome à ilha!

Por outro lado, uma vez que o azoto captado fica disponível não só para o samouco, mas também para as outras espécies que ocorram no local, esta espécie desenvolveu uma outra estratégia “dominadora” do espaço que ocupa – a alelopatia – ou seja, impede a germinação e o crescimento de outras plantas, uma vez que contém componentes químicos inibidores que se acumulam, a partir de restos de folhas e ramos, na superfície do solo.

Esta característica levou a que esta espécie se tornasse uma ameaça à flora nativa de algumas regiões do mundo, onde foi introduzida pelos humanos nos finais do século XIX, com fins ornamentais e medicinais.

No Hawai, Austrália, Nova Zelândia e outras ilhas do Pacífico, o samouco é uma espécie invasora, constando da lista das 100 espécies exóticas invasoras mais nocivas do mundo da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN – International Union for Conservation of Nature).

Foto: Forest and Kim Starr/Wiki Commons

O rápido crescimento, a facilidade de dispersão por aves frugívoras e o seu poder alelopático são os principais responsáveis por formar rapidamente povoamentos densos, tendo um efeito negativo no recrutamento e persistência de espécies vegetais nativas.

No passado, a dominância desta espécie nas ilhas dos Açores levou a que uma das ilhas do grupo fosse nomeada “Faial”, a ilha anteriormente conhecida como “Ilha Ventura” ou até “Ilha de São Luís”.

No entanto, o habitat natural do samouco tem vindo a sofrer inúmeras modificações nessas áreas, sendo menos frequente as áreas extensas desta espécie em terras açorianas.

As populações naturais nos Açores são cada vez mais raras e encontram-se severamente fragmentadas, muito devido à desmatação constante destas áreas, à predação de sementes e à introdução de uma espécie exótica, de crescimento mais rápido – o incenso (Pittosporum undulatum). Esta espécie originária da Austrália tornou-se uma poderosa espécie invasora, capaz de competir e até eliminar o samouco do seu habitat natural.

Samouco na ilha do Pico, Açores. Foto: Ruben JC Furtado/Wiki Commons

Por outro lado as populações na Madeira têm aumentado em tamanho.

A União Internacional para a Conservação da Natureza avalia o samouco como espécie “Pouco preocupante” a nível global e na Europa, uma vez que ainda não há evidências de declínio, e porque ainda ocorre numa grande área.

Planta ornamental

O interesse ornamental desta planta é elevado. A folhagem perene, verde-escura e luminosa, os frutos comestíveis e coloridos, o crescimento relativamente rápido e a fácil adaptação e desenvolvimento em solos pobres tornam-na muito interessante do ponto de vista ornamental.

O samouco é ideal em jardins costeiros e jardins de baixa manutenção, em sebes informais, quebra-ventos, em pequenos grupos frondosos ou até como espécimes isolados.

A madeira desta árvore é usada para lenha e carvão vegetal, mas também no fabrico de pequenos utensílios domésticos, cabos, postes, estacas e alfaias agrícolas.  

É uma madeira medianamente pesada e dura, de grão fino e textura homogénea. Apresenta uma cor amarelada a avermelhada, escurecendo ligeiramente com a idade, apresentando tons acastanhados. A casca foi muito utilizada na indústria de curtumes.

Foto: Krzysztof Ziarnek/Wiki Commons

Os frutos são comestíveis e doces, embora com um sabor ligeiramente adstringente, podendo deixar a língua áspera. Podem ser consumidos tanto em fresco como em compostas. São fortemente corantes, deixando na pele e mucosas um tom azulado. Também podem ser utilizados como corante alimentar.

Durante muito tempo fizeram parte da dieta alimentar dos Guanches, povos aborígenes das Ilhas Canárias.

Registos etnobotânicos apontam para a utilização dos seus frutos como remédio adstringente para o tratamento do catarro.

O samouco é, sem dúvida, uma espécie particular pelas suas propriedades mas também pelo “dilema” em que vive. Se por um lado é uma espécie nativa em risco no seu habitat natural, por outro é uma espécie invasora preocupante para a conservação do habitat natural de outras espécies.


Dicionário informal do mundo vegetal:

Nodoso – que tem nós.

Coriácea – que tem uma textura semelhante à casca da castanha ou do couro.

Peciolada – provida de pecíolo.

Lanceolada – forma semelhante a uma lança.

Oblanceolada – forma lanceolada, porém invertida.

Cuneada – base em forma de cunha (base estreita e aguda).

Pontuado-glandulosa – pontuado por glândulas.

Dióica – espécie que apresenta flores unissexuadas, femininas e masculinas, ocorrendo em indivíduos diferentes. A espécie que apresenta flores femininas e masculinas separadamente na mesma planta, denomina-se monóica.

Amentilho – Inflorescência semelhante a uma espiga, onde as flores, geralmente unissexuais, surgem agrupadas num eixo comum.

Espiciforme – em forma de espiga.

Glomérulo – inflorescência, frequentemente globosa, com eixo principal de crescimento limitado, onde as flores se reúnem muito próximas, sobre um pecíolo curto.

Drupa – fruto carnudo que contém uma a duas sementes, protegidas por um caroço duro.

Dispersão zoocórica ou Zoocoria – dispersão de sementes, frutos, esporos, pólen etc. por intermédio de animais.

Dispersão anemócorica ou Anemocoria – dispersão realizada pelo vento.

Alelopatia – processo natural desenvolvido pelas plantas e outros organismos que influenciam o crescimento e desenvolvimento de outros seres, através da produção de compostos químicos que liberta para o ambiente.


Todas as semanas, Carine Azevedo dá-lhe a conhecer uma nova planta para descobrir em Portugal. Encontre aqui os outros artigos desta autora.

Carine Azevedo é Mestre em Biodiversidade e Biotecnologia Vegetal, com Licenciatura em Engenharia dos Recursos Florestais. Faz consultoria na gestão de património vegetal ao nível da reabilitação, conservação e segurança de espécies vegetais e de avaliação fitossanitária e de risco. Dedica-se também à comunicação de ciência para partilhar os pormenores fantásticos da vida das plantas. 

Para acções de consultoria, pode contactá-la no mail [email protected]. E pode segui-la também no Instagram.

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