Alentejo. Foto: Nuno Sequeira André/WikiCommons

Paisagens da memória: À sombra da azinheira

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Todos os meses, o projecto “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”, ligado à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, dá-lhe a conhecer as paisagens e a biodiversidade que povoam as obras literárias de escritores portugueses.

“A terra onde os olhos se lhe perderam parecia não ter fim até nos longínquos horizontes onde se confundia com o céu. Minúsculas borboletas dum azul muito carregado, outras dum amarelo intenso como ocre lembravam flores de charneca a que de repente tivessem crescido asas na ânsia de fugirem ao triste destino que, tão doces, as prendera àquelas hastes secas e duras que jamais tinham visto curvar-se em blandiciosos gestos de doçura. A seara madura era como que um outro céu mais abrasado, dum esmalte mais vivo. As grandes azinheiras escuras, espalhadas aqui e ali, desenhavam desgrenhadas flores de sombra no ouro em pó das suaves colinas, arredondadas e fugidias, cordilheiras de ondas pequeninas até onde os olhos as podiam seguir.”

Florbela Espanca, O Dominó Preto, (O regresso do filho)

A pé, vindo da Herdade das Pedralvas, rumo ao Monte das Chãs, o lavrador (Justino Urbano) descansa à sombra de uma grande azinheira (Quercus rotundifolia), numa tórrida manhã de Junho. 

Alentejo. Foto: Nuno Sequeira André/WikiCommons

Comum no Sul mediterrânico do país, a azinheira exibe folhas rijas e coriáceas, aptas a uma menor evapotranspiração. De Março a Junho, pequenas flores amareladas cobrem a copa. No Outono, amadurece e cai a bolota – recurso alimentar de porcos de montanheira e, até meados do século XX, de gente desfavorecida. Essencial no sistema agro-silvo-pastoril – montado de azinho com cerealicultura – é fonte de madeira, carvão e lenha (de elevado poder calorífico). Madeira dura, que não apodrece – daí o uso em rodas de carroças ou em chão de parquet. A casca acinzentada é rica em taninos, sendo usada na indústria de curtumes, tinturaria e mordentes.

Erguendo-se na paisagem, mitigando a aridez da terra em pousio, a grande azinheira sinaliza um limiar de mundos (solar/lunar) e destinos (vida/limbo).  

A meia hora de Chãs, para anunciar a (provável) morte do filho do compadre Gabriel, em África, Justino Urbano submete-se à religiosa e extática paz dos campos. O olhar fixa-se na infinitude oceânica da terra. Perde-se na extensa seara (qual ouro vertido em sinuoso relevo) e no sarapintado irregular de azinheiras (quais flores negras lavrando a claridade). Avizinha-se o tempo da ceifa. Entre o céu e a reluzente seara, vê transfiguradas flores em borboletas esvoaçantes. Vê, nessa conversão, a escusa de fuga. 

Região portuguesa na qual se enquadra este excerto literário. Autoria: Daniel Alves

O olhar do sisudo lavrador muda com a incandescência das emoções. O interregno apaziguador e abençoado acaba quando, aterrado, vê o muro branco das Chãs. Dói-lhe ver a casa branca de Gabriel sem a doce sombra de uma árvore, sob o sol inclemente. Arde-lhe a consciência só de imaginar que a terra irá puni-lo – soterrando-lhe os dois filhos, Nazaré e Francisco – se ousar falar de devastadora notícia. Volta para casa. 

A ligação entre os dois compadres, viúvos, toca ao feminino. Nazaré (filha de Justino) avisa Ana (irmã de Gabriel). Às duas mulheres cabe – além da lida doméstica – um duplo ónus: anunciar (com tacto) más novas e ser (tacitamente) refúgio e força na hora mais ardente da aflição. Arredios à expressão de emoções, sobretudo negativas, os homens enlevam-se com as largas extensões de terra de que sonham apoderar-se. Falhar tal sonho é inaceitável. Por demência, Gabriel nega a dupla perda: a do filho, Justino, e a do sonho de riqueza que lhe caberia realizar. O filho remete-se (por dez anos) ao silêncio, moído pelo desânimo e a vergonha da miséria em que caíra. Só a saudade da terra o fará regressar. Sonha rever e unir-se ao feminilizado lugar de origem. Ao invés de Francisco, que voltara remediado de África, Justino (do Gabriel) retorna débil e pobre. Levado por Urbano e Francisco, cresce-lhe – ao passar pela azinheira – a alegria do regresso e a expectativa do reencontro familiar. Apraz-lhe o imortal chão alentejano. E o pai só cisma com o dia da verdadeira vinda do filho.


Carlos Augusto Ribeiro pertence ao grupo de investigadores ligados ao  “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”. Esta é a oitava crónica da série Escrita com Raízes.

(O autor não utiliza o novo acordo ortográfico)


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