Tiroteo no momento da devolução à natureza. Foto: Samuel Infante

Este grifo sobreviveu a 38 “bagos” de chumbo e foi agora libertado

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Macho foi baptizado de Tiroteo devido aos tiros de caçadeira com que foi atingido, contou à Wilder o coordenador do CERAS – Centro de Estudos e Recuperação de Animais Selvagens, em Castelo Branco.

Tiroteo foi devolvido à natureza esta terça-feira, em Vila Velha de Ródão, onde habita a colónia de grifos mais próxima do local onde tinha sido encontrado. Ali, este grifo nascido no ano passado vai poder juntar-se a outros juvenis da mesma espécie, cujos adultos estão por estes dias ocupados a tratar dos ninhos e dos ovos.

Para que possa ser identificado se for novamente resgatado ou observado por alguém, a equipa do CERAS – Centro de Estudos e Recuperação de Animais Selvagens marcou-o com uma anilha e com marcas alares.

Tiroteo pouco antes de ser libertado. Foto: Samuel Infante

Quando chegou a esse centro de recuperação de fauna selvagem, em Novembro passado, este jovem grifo estava muito debilitado, magro, com um peso abaixo do normal para a espécie e muito desidratado, contou à Wilder o coordenador desta unidade gerida pela Quercus, Samuel Infante.

Mas foi quando fizeram o exame inicial de entrada no centro, que inclui um raio-x, que a equipa percebeu que a ave tinha sido vítima de disparo ilegal. “Foi  possível observar a existência de 38 objectos circulares, com diâmetros compreendidos entre 1 e 2 milímetros”, recorda o mesmo responsável. Verificaram então que se tratava de munições de chumbo, dispersas “em diversos locais do corpo do animal: músculos dos membros, cavidade celómica, tecido subcutâneo, entre outros”.

Raio-x feito ao grifo no CERAS. Foto: Samuel Infante

“Esta ave teve muita sorte de que os 38 projecteis de chumbo  não atingiram nenhum orgão vital, nem provocaram lesões que tornassem a ave irrecuperável e inviável de ser devolvida à natureza”, nota o mesmo responsável.

Assim, passados alguns dias de tratamento, Tiroteo recuperou vitalidade e tudo parecia bem encaminhado para ser rapidamente devolvido à natureza. Mas passado pouco tempo, “voltou a degradar a sua condição”.

O que se passava?

“Fizemos análises ao sangue e descobrimos que tinha níveis elevados de chumbo”, explica Samuel Infante. Os valores encontrados indicaram que se tratava de uma intoxicação subclínica – ou seja, que não é detectada por exames regulares – provocada por “alguns dos ‘bagos’ de chumbo no corpo da ave”.

Na maioria dos casos, a intoxicação por este metal pesado costuma acontecer “quando aves aquáticas ou outras, como as perdizes, ingerem restos de balas, ou então quando algumas aves, em especial as de rapina, comem outras aves que têm chumbo.”

Tiroteo quando estava ainda em tratamento. Foto: Samuel Infante

E os resultados dessa intoxicação, tal como aconteceu com este grifo, são preocupantes: quando é absorvido “o chumbo afecta todo o organismo, prejudicando a saúde geral, a capacidade reprodutiva e as faculdades mentais”, descreve Samuel Infante. E mesmo que as doses de chumbo ingerido não provoquem a morte da ave, o sistema imunitário é também afectado devido à redução de anticorpos e a flora intestinal fica alterada, aponta também.

No caso de Tiroteo, foram necessários vários meses e o acesso a uma substância que não se encontra disponível em Portugal para tratamento veterinário para recuperar do breve momento em que se tinha cruzado com uma caçadeira.

Este grifo também fez treinos de voo. Foto: Samuel Infante

Assim, além dos fluídos e vitaminas que ao longo do tratamento o ajudaram a recuperar o estado geral de saúde, este grifo recebeu também alguns fármacos que eliminaram definitivamente o chumbo do seu organismo. Entre esses, contou-se o cálcio dissódico EDTA, um agente quelante do chumbo usado no tratamento dessas intoxicações, que acabou por ser conseguido através de uma organização internacional, a VCF – Vulture Conservation Foundation (Fundação para a Conservação dos Abutres, em português). “Solicitámos o apoio à VCF que gentilmente nos conseguiu o medicamento”, explica Samuel Infante.

Mas esta situação não é única, pelo contrário. “Infelizmente todos os anos temos vários casos com abutres-pretos, águias-calçadas e grifos, entre outras aves.”

Proibir o chumbo

Medidas necessárias para que casos assim não se voltem a repetir? “Em relação à intoxicação por chumbo, precisamos da proibição total de uso de munições de chumbo na actividade cinegética e também do seu uso na pesca”, defende Samuel Infante, que lembra que no mercado já estão à venda algumas alternativas não tóxicas e que vários países da Europa já aplicam essa regra.

Já no que respeita ao disparo ilegal de que esta ave selvagem foi alvo, o coordenador do CERAS advoga que é importante haver “mais fiscalização e penas mais pesadas para estes crimes, para que não fiquem impunes”. No caso de Tiroteo, o atirador nunca foi encontrado.


Agora é a sua vez.

Uma das formas de financiamento a que recorrem os centros de recuperação de fauna selvagem é o apadrinhamento dos animais que aí estão em recuperação. Descubra como pode apadrinhar um dos animais no CERAS ou noutros centros geridos pela Quercus.


Já que está aqui…

Ainda vai a tempo para apoiar o projecto de jornalismo de natureza da Wilder com o calendário para 2021 dedicado às aves selvagens dos nossos jardins.

Com a ajuda das ilustrações de Marco Nunes Correia, poderá identificar as aves mais comuns nos jardins portugueses. O calendário Wilder de 2021 tem assinalados os dias mais importantes para a natureza e biodiversidade, em Portugal e no mundo. É impresso na vila da Benedita, no centro do país, em papel reciclado.

Marco Nunes Correia é ilustrador científico, especializado no desenho de aves. Tem em mãos dois guias de aves selvagens e é professor de desenho e ilustração.

O calendário pode ser encomendado aqui.

Inês Sequeira

Foi com a vontade de decifrar o que me rodeia e de “traduzir” o mundo que me formei como jornalista e que estou, desde 2022, a fazer um mestrado em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova. Comecei a trabalhar em 1998 na secção de Economia do jornal Público, onde estive 14 anos. Fui também colaboradora do Jornal de Negócios e da Lusa. Juntamente com a Helena Geraldes e a Joana Bourgard, ajudei em 2015 a fundar a Wilder, onde finalmente me sinto como “peixe na água”. Aqui escrevo sobre plantas, animais, espécies comuns e raras, descobertas científicas, projectos de conservação, políticas ambientais e pessoas apaixonadas por natureza. Aprendo e partilho algo novo todos os dias.

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