A revisão do estatuto do coelho-bravo para Em Perigo de extinção apanhou muitas pessoas de surpresa. Dois investigadores explicam-lhe o que está em causa.
Em Dezembro passado, a União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN) reviu o estatuto de conservação do coelho-bravo (Oryctolagus cuniculus) nas áreas onde este é nativo: Portugal, Espanha e França. A espécie passou de Quase Ameaçada para Em Perigo de extinção, tendo em conta uma descida global de 70% nos últimos anos e uma população severamente fragmentada.
Com a ajuda de Pedro Monterroso e Nuno Santos, do CIBIO InBIO – Centro de Pesquisa em Biodiversidade e Recursos Genéticos, ligado à Universidade do Porto, fique a saber o que se está a passar:
1. Coelho está a descer 20% por ano em Portugal e Espanha
A queda de 70% no coelho-bravo, estimada pela UICN, resulta da soma de várias descidas consecutivas das populações de coelho em Portugal e Espanha, em média de 20% por ano, indicam Pedro Monterroso, que é também biólogo, e Nuno Santos, médico veterinário.
Na base destes cálculos está a monitorização de coelhos selvagens feita por investigadores na região do Vale do Guadiana, mais concretamente nas zonas de Mértola e Serpa, e na Serra Morena, sul de Espanha.
Desde há vários anos que as populações de coelho estavam a recuperar, depois de afectadas pela destruição de habitat e por doenças como a mixomatose, desde os anos 50, e pela doença hemorrágica viral no final dos anos 80. Mas começaram a cair novamente a partir de 2011, em Espanha, e 2012 em Portugal, avançou um estudo publicado em 2016 na Nature.
E para já, não parece haver melhorias. “Na Península Ibérica existem alguns núcleos que mantêm populações relativamente densas de coelho-bravo, mas na maior parte do território as densidades aparentam ser muito baixas”, avançam os dois investigadores.
Quem vive no Alentejo, uma das regiões do país onde há mais coelhos, até pode acreditar que a situação é bem pior. Como a densidade destes animais baixou, são mais difíceis de ver. “Uma coisa é a nossa percepção da diminuição, outra coisa é a diminuição real. As pessoas têm a percepção de que os animais diminuíram 80 a 90%.”
2. Nova estirpe da doença hemorrágica viral apanha coelhos mais jovens
O que está agora a ter mais impacto no coelho-bravo é uma nova estirpe do vírus que provoca a doença hemorrágica viral. A primeira estirpe tinha sido detectada na China em 1983, chegando rapidamente à Europa e à Península Ibérica no final da década. Em pouco tempo provocou fortes descidas nas populações de coelho, que mais tarde começaram a recuperar.
Mas em 2010, surgiu em França uma segunda estirpe que se espalhou rapidamente para outros países e regiões: Espanha (2011), Portugal (2012), Bélgica, Reino Unido e Açores, entre outros. Ao contrário da primeira estirpe do vírus, que deixou de ser detectada e apanhava coelhos já adultos, esta nova variante “afecta também os juvenis mais pequenos, que desta forma nunca chegam à idade adulta e nunca se chegam a reproduzir.”
“Mesmo que não cheguem a morrer da doença, estes coelhos começam a ficar mais fracos e são comidos por outros animais. Muitas vezes, o que é atribuído aos predadores tem a ver com a doença.”
Mas há outras causas para o declínio actual do coelho que precisam de ser melhor avaliadas. Por exemplo? Outras doenças como a mixomatose, a pressão da caça e dos predadores e a fragmentação e destruição dos habitats típicos desta espécie.
3. Ainda há esperança para os coelhos? É preciso ganhar tempo
Com o passar dos anos, a espécie vai tornar-se cada vez mais resistente, acreditam os cientistas. Isso aconteceu por exemplo no caso da mixomatose. Em estudos realizados em laboratório, publicados num artigo científico em 2017, concluiu-se que “pelo menos um terço da população de coelho-bravo em Portugal já apresenta alguma imunidade” à nova estirpe de doença hemorrágica viral.
Mas é difícil afirmar que o coelho vai recuperar, pois a velocidade com que a imunidade está a crescer pode não ser suficiente. “O problema é que para os nossos objectivos de conservação, esse aumento de resistência pode demorar muito tempo”, avisa Pedro Monterroso. Ainda para mais quando outros factores também afectam a espécie.
E por isso, os investigadores acreditam que é necessário dar-lhe uma ajuda. “Promover a resistência [do coelho-bravo] é promover a recuperação das populações”, sublinham.
Como? Reduzindo a pressão dos predadores e da caça em determinadas áreas, aumentando a disponibilidade de alimentos para este herbívoro, fazendo uma gestão do seu habitat. Todas estas são ajudas possíveis, mas é importante serem decididas de acordo com o que se passa em cada região, ressalvam.
E para isso, a prioridade agora é saber o que se está a passar por todo o território, pois “apenas existe alguma informação dispersa que abranja o período pré e pós aparecimento” desta nova estirpe, indicam Pedro Monterroso e Nuno Santos. “Sem uma boa monitorização, de forma a definir quais são as medidas mais adequadas de acordo com o que se passa em diferentes regiões do país, é deitar dinheiro dos contribuintes à rua.”
Para já, o programa + Coelho, iniciado em 2018 e coordenado pelo Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária, prevê acções de monitorização de coelhos na natureza. Mas como o financiamento depende do Fundo Florestal Permanente, é obrigatória uma nova candidatura todos os anos.
“Tem de haver uma estratégia de fundo que deve assentar numa monitorização feita com regularidade e não apenas de forma reactiva. Como acontece em países como os EUA, Suécia, etc, onde estas monitorizações acontecem há 20, 30, 50 anos”, apelam os investigadores portugueses.
Não só para o coelho mas também para outras espécies, como a perdiz, o veado e o lince, exemplificam, “que são base para a conservação dos ecossistemas mas também estão na base da economia dos meios rurais de Portugal.”
4. “Tudo o que tem dentes e garras come coelho”
Nas regiões onde é nativo, o coelho é uma peça importante dos ecossistemas e das economias locais. “É a base da conservação da biodiversidade nos ecossistemas ibéricos mediterrânicos e um factor importantíssimo para a economia rural, tanto em Portugal como em Espanha”, salientam os dois investigadores.
Basicamente, “tudo o que tem dentes e garras come coelho.” É aliás um alimento essencial para a águia-imperial-ibérica e o lince-ibérico, duas espécies da Península Ibérica ameaçadas de extinção.
Assim, quando as populações de coelho diminuíram, seguiu-se uma queda no número de fêmeas reprodutoras de lince e de crias nos ninhos de águia-imperial, sustenta o artigo publicado na Nature. Resultado? Uma quebra de 65,7% na fecundidade do lince-ibérico e de 45,5% na fecundidade da águia-imperial. Ou seja, na capacidade de se reproduzirem naturalmente.
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