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Por onde se começa uma Lista Vermelha de borboletas e outros invertebrados?

26.03.2019

Há mais de 700 espécies de insectos, moluscos e uma sanguessuga para avaliar quanto ao risco de extinção em Portugal até 2021. A Wilder foi ao Museu de Ciência da Universidade de Coimbra perceber como se faz uma Lista Vermelha.

 

Cheira a álcool e a líquidos conservantes antigos, custa a respirar e as luzes são artificiais, mas nada demove a equipa de investigadores. Albano Soares, Patrícia Garcia Pereira e Rui Félix debruçam-se sobre uma bancada estreita, onde analisam libélulas e libelinhas guardadas nesta sala das reservas do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra.

 

Dois investigadores a trabalharem
Albano Soares e Rui Félix (ao fundo) analisam alguns espécimes. Foto: Joana Bourgard

 

Neste espaço estão centenas de milhares de exemplares de zoologia conservados fora da exposição patente ao público. A maioria está dentro de grandes armários com portas de metal, em gavetas estreitas e resguardadas com vidro. Como uma colecção de colêmbolos, quase invisíveis a olho nu, ou exemplares de mosquitos, de escaravelhos e de coloridas borboletas, algumas guardadas em armários originais do século XIX.

 

A curadora da colecção de zoologia, Ana Rufino, mostra o que guarda um armário do século XIX. Foto: Joana Bourgard

 

Em algumas prateleiras abertas há ninhos de aves e animais taxidermizados, incluindo um pequeno crocodilo tapado por papel vegetal.

Bem agasalhados para combater o frio de Fevereiro – a sala não é climatizada, como acontece aliás noutras partes do museu – os três entomólogos estão a trabalhar para a nova Lista Vermelha de grupos de Invertebrados Terrestres e de Água Doce. O projecto está a avaliar pela primeira vez o risco de extinção de mais de 700 espécies em Portugal Continental, incluindo insectos, moluscos e uma sanguessuga.

Até 2021 estão previstas numerosas missões de campo que envolvem especialistas de norte a sul do país, mas também há muito trabalho a fazer nas colecções de História Natural.

 

sala
Parte de uma das salas de reservas, onde a equipa está a trabalhar. Foto: Joana Bourgard

 

Hoje, os três investigadores estão a avaliar as colecções de Odonata (libélulas e libelinhas) e de borboletas diurnas guardadas no Museu da Ciência. As respostas que descobrirem vão dar pistas sobre os locais onde já houve – e talvez ainda ocorram – insectos vivos dessas espécies.

“É preciso identificar o bicho, confirmar [a espécie] numa base de dados, colocar o local e a data em que foi colectado, qual o local do museu em que está guardado”, enumera Patrícia Garcia Pereira, investigadora do cE3c – Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, e coordenadora do grupo dos artrópodes para esta Lista Vermelha.

 

Investigadora
Patrícia Garcia Pereira com alguns dos espécimes da colecção. Foto: Joana Bourgard

 

Neste trabalho de paciência, os investigadores têm a ajuda de um microscópio USB, que tira fotografias aumentadas e úteis quando surgem dúvidas. Por exemplo? É assim que conseguem ver a cauda de libélulas e libelinhas em pormenor, para confirmar se são machos ou fêmeas.

Desde que o projecto arrancou, em Junho de 2018, boa parte do trabalho destes e de outros investigadores tem sido analisar exemplares de insectos e de outros invertebrados “esquecidos” em gavetas nas colecções de História Natural, rever a bibliografia que já foi publicada sobre as espécies ou a vasculhar bases de dados antigas sobre invertebrados em Portugal.

 

Retrato do Gerês em 1928

Mas como acontece em Coimbra, muitas colecções têm inúmeras perguntas por responder, pois faltam mãos para catalogar os milhares de espécimes ali guardados. Ou a espécie não está identificada, ou não ficou descrito se era macho ou fêmea, ou não há registo do local onde o exemplar foi recolhido.

Com a informação que vai produzindo, a equipa da Lista Vermelha também está a ajudar a catalogar estes insectos. É o que acontece com os pequenos envelopes de papel que Patrícia Garcia Pereira tem nas mãos, ao lado da curadora da colecção de zoologia do museu, Ana Rufino. Cada um esconde um insecto e exibe uma data e um local em letras manuscritas, difíceis de decifrar nos dias de hoje.

 

pequenos envelopes de papel
Alguns dos envelopes que conservam insectos há mais de 90 anos, em Coimbra. Foto: Joana Bourgard

 

Apesar da dificuldade, ficamos a saber que os espécimes foram colectados em 1928, na região do Gerês. Assim guardados, nunca chegaram a ser montados como ditam as regras, mas vão ajudar a compor “uma fotografia do Gerês” de há 90 anos, respondendo a duas questões. Quais eram os insectos que ali ocorriam? E em que locais da serra?

Quanto a saber se ainda andam por ali, essa pergunta vai ter resposta em Agosto, quando está agendada uma visita de especialistas da Lista Vermelha ao único parque nacional de Portugal, no âmbito do trabalho de campo.

Mas por estes dias, os três entomólogos têm tido algumas boas surpresas. No Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto, onde tinham ido na véspera, descobriram um achado interessante: “Encontrámos um exemplar de borboleta capturada na Ribeira das Lajes, em Oeiras, em 1983, que agora só ocorre no Barlavento Algarvio e em parte do Interior Alentejano”, descreve Patrícia Garcia Pereira.

É a borboleta fritilária-do-sul (Melitaea aetherie), uma das espécies mais raras de Portugal e da Europa. “Temos de ir à procura dela na ribeira das Lajes, dentro de poucos meses, para confirmar se se pode lá encontrar.”

 

borboleta pousada num cardo
A borboleta fritilária-do-sul (Melitaea aetherie). Foto: gailhampshire/Wiki Commons

 

Falta de dinheiro ameaça colecções

Houve também achados menos bons, tudo por culpa de um alfinete mal colocado. “Encontrámos um exemplar de libelinha que não está dada para Portugal, mas o exemplar está tão mal tratado, que foi impossível determinar o sexo!”, lamenta Patrícia Garcia Pereira. No caso desta libelinha poderia haver um contributo importante para a História Natural e para a Ciência, que fica sem validade.

“É essa a importância de ter os exemplares bem preservados e catalogados”, sublinha, mas infelizmente é apenas mais um caso entre outros. Por exemplo, os investigadores têm-se deparado com exemplares identificados apenas como sendo da “colecção de Coimbra”. “Qual colecção? Pertencem à colecção do museu? Foram apanhados em Coimbra?”, questiona a investigadora, realçando a importância do trabalho que é preservar e catalogar devidamente as colecções de História Natural.

 

Um dos espécimes analisados pela equipa. Foto: Joana Bourgard

 

“É claro que para terem tudo bem precisam de mais pessoas.” No total, trabalham apenas três bolseiros, incluindo a curadora, na colecção de Zoologia. Em causa estão à volta de 500.000 exemplares, incluindo cerca de 200.000 espécimes de insectos.

Mais: falta investir em salas climatizadas. Só assim as salas deste e de outros museus vão deixar de seguir o ritmo das estações – frio e humidade no Inverno, calor tórrido quando chega o Verão.

Principais vítimas? As borboletas. “São os exemplares mais frágeis dentro da colecção de insectos. Num museu a sério, tem de haver uma sala com temperaturas mais baixas para colocar os espécimes.”

 

borboletas preservadas em colecção
Parte da enorme colecção de invertebrados do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra. Foto: Joana Bourgard

 

Não é só a “saúde” dos espécimes que fica prejudicada. Aqui ainda há muitos exemplares conservados em líquidos que hoje estão banidos de outros museus na Europa. “Precisamos de uma sala climatizada com armários próprios, que não tenham químicos lá dentro. Estes químicos são todos cancerígenos”, alerta Patrícia Garcia Pereira.

Mas o problema não é só de Coimbra. “É preciso reconhecer que as colecções de História Natural têm valor para a Ciência. Conseguimos não ter um único museu de História Natural em condições”, sublinha a investigadora, para quem o museu que ainda vai estando melhor é o do Porto.

Nos últimos meses, o trabalho de avaliar as colecções de História Natural para a Lista Vermelha de Invertebrados fez-se também no Porto e em Lisboa. As colecções do Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária, do Instituto Superior de Agronomia e do Mosteiro de Singeverga são outros destinos dos investigadores, que estão a ponderar uma visita aos politécnicos da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Beja e Évora.

A partir de Março, com os dias já mais quentes e os insectos a regressarem à actividade, é altura de partir para o trabalho de campo. O regresso às quatro paredes está prometido lá para o Outono, em Outubro.

 

[divider type=”thin”]Saiba mais.

Recorde aqui o que andam os investigadores a fazer nesta altura do ano, nos trabalhos de campo para a Lista Vermelha de grupos de Invertebrados Terrestres e de Água Doce.

Inês Sequeira

Foi com a vontade de decifrar o que me rodeia e de “traduzir” o mundo que me formei como jornalista e que estou, desde 2022, a fazer um mestrado em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova. Comecei a trabalhar em 1998 na secção de Economia do jornal Público, onde estive 14 anos. Fui também colaboradora do Jornal de Negócios e da Lusa. Juntamente com a Helena Geraldes e a Joana Bourgard, ajudei em 2015 a fundar a Wilder, onde finalmente me sinto como “peixe na água”. Aqui escrevo sobre plantas, animais, espécies comuns e raras, descobertas científicas, projectos de conservação, políticas ambientais e pessoas apaixonadas por natureza. Aprendo e partilho algo novo todos os dias.

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