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Quais são as maiores lacunas sobre a biodiversidade em Portugal?

30.11.2017

São muitas, concordam investigadores, naturalistas, associações ambientais e o próprio Governo. Há falta de meios, de pessoas, de dinheiro e mesmo de divulgação dos estudos e censos sobre a biodiversidade em Portugal. A Wilder falou com especialistas e faz-lhe um pequeno retrato da situação.

 

“O nível de conhecimento que se detém no nosso património natural fragiliza a tomada de decisão” da parte do Estado português, reconhece a nova versão da Estratégia Nacional de Conservação da Natureza e Biodiversidade.

O documento elaborado pelo Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), sob tutela do Ministério do Ambiente – e que deverá ser publicado em breve – reconhece que a falta de conhecimento sobre a biodiversidade começa logo pela caracterização dos habitats naturais. Sobre estes, “Portugal possui um quadro de referência” que tem “cerca de 20 anos de idade”.

“Durante este tempo, não foram constituídos instrumentos sistémicos e perenes de monitorização, pelo que salvo algumas excepções, a informação em que hoje o país se sustenta para determinar o ‘estado actual de conservação dos habitats e espécies’ é de base pericial.”

As espécies autóctones da flora e as espécies de invertebrados são dois domínios onde é necessária mais informação, indica o documento, que esteve em consulta pública até 30 de Setembro.

Patrícia Tiago, bióloga e responsável pela BioDiversity4All – plataforma nacional de registo de espécies, aberta a qualquer cidadão – concorda que ainda há muito por saber sobre os invertebrados, tanto terrestres como marinhos.

 

Borboleta-cauda-de-andorinha. Foto: Lucarelli/Wiki Commons

 

“Estamos a falar de um grupo ainda muito mal conhecido, tanto no que respeita às espécies como à distribuição no território. Desde logo porque os invertebrados são um grupo difícil, sem muitas pessoas a participar, e no qual os cidadãos não se envolvem tanto”, afirmou à Wilder.

Esta “lacuna grande no conhecimento das espécies” deve-se também à falta de cientistas. A parte da taxonomia tem vindo a piorar um pouco nos últimos anos, uma vez que o número de investigadores nesta área diminuiu, lamenta. Em contrapartida estão a aumentar os geneticistas, “que acabam por fazer de forma diferente a mesma tarefa”.

Ainda assim, em termos gerais tem havido uma boa evolução. Graças, em parte, à contribuição de projectos de ciência cidadã para a biodiversidade, que procuram envolver as pessoas em geral na identificação e reconhecimento de espécies. “Desta forma, contribui-se para aumentar o conhecimento sobre a distribuição de espécies em Portugal.”

 

Pelagia noctiluca, uma das espécies que ocorrem na costa portuguesa. Foto: Susana Martins

 

Em causa estão por exemplo os bioblitzs, que são levantamentos de espécies num determinado local, realizados em poucas horas por cidadãos e cientistas, ou projectos como O Esquilo Vermelho em Portugal, o GelAVista e o censo da águia-pesqueira. E também plataformas como o BioDiversity4All, onde qualquer cidadão pode registar as espécies que observa.

 

“Entomólogos portugueses contam-se pelos dedos”

“A fauna de insectos é muito mal conhecida”, concorda Patrícia Garcia Pereira, investigadora da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e coordenadora da Rede de Estações da Biodiversidade, que ajuda a divulgar espécies locais de insectos e plantas junto do grande público.

Esta bióloga diz que há algumas excepções. Estas são “alguns grupos como borboletas, libélulas e algumas famílias de escaravelhos”, gafanhotos e grilos, onde “vamos no bom caminho”.

A investigadora sublinha também que “os insectos são aproximadamente 80% da diversidade de qualquer ecossistema terrestre”. “Estamos muito longe de conhecer a fauna em Portugal Continental, que deve ser superior a 20.000 espécies.”

 

Abelha-europeia (Apis mellifera). Foto: Arturo Mann / Wiki Commons

 

Um dos problemas é a falta de pessoas: “Os entomólogos portugueses contam-se pelos dedos”, lamenta Patrícia Garcia Pereira numa entrevista à Wilder. Exemplo: no grupo das abelhas e vespas, que abrange mais de 2.000 espécies, conhece apenas um investigador que faz trabalho.

Nos Açores e Madeira o panorama é “totalmente distinto”, graças ao trabalho de um grupo da Universidade dos Açores. “Está publicada a lista de espécies dos arquipélagos da Madeira e Açores e os resultados também podem ser consultados online”.

Na opinião desta investigadora, era necessário dar a volta ao sistema de ensino, apresentando logo desde o primeiro ciclo “a diversidade e importância ecológica do grupo dos insetos”.

“Como é que se fala de biodiversidade, conservação da natureza, relações ecológicas, sistemas de ecossistemas, sem fazer praticamente uma referência ao grupo de animais responsável pela qualidade ambiental e funcionamento dos ecossistemas, pelo menos no meio terrestre? Está tudo virado ao contrário.”

 

E quanto às aves?

“Há sem dúvida muito mais conhecimento do que há cinco ou dez anos ou vinte anos”, relata Gonçalo Elias, coordenador do portal Aves de Portugal. “Hoje há muito mais informação e ela está mais acessível do que quando comecei a observar aves, no final dos anos 80”.

O ornitólogo aponta o primeiro Atlas das Aves Nidificantes em Portugal, publicado em 1989, como “um marco para o conhecimento da distribuição das espécies no território continental”.

Mas hoje em dia, apesar de haver um grande conhecimento sobre a distribuição das aves – devido à publicação de vários Atlas, ao portal eBird, à produção de muita informação sobre áreas de ocorrência – o panorama é diferente se olharmos para a questão das quantidades. Isso tendo em conta, aliás, que “a quantificação é sempre importante no longo prazo”, que deve haver “uma monitorização regular ao longo de 10, 20, 30 anos”.

 

Foto: Gilles Pretet

 

Gonçalo Elias dá o exemplo do censo da cegonha branca, que se realiza de 10 em 10 anos, e sublinha que é a longo prazo que se percebe se uma espécie rara está a aumentar, ou uma espécie mais comum a perder população.

“Algumas espécies de aves estão muito bem estudadas”, mas a falta de conhecimento sobre a evolução das populações sente-se em aves nidificantes como os passeriformes, pequenas aves como, por exemplo, os melros, aponta.

“Nestes casos, as contagens fazem-se por amostragem. Em Portugal temos o Censo das Aves Comuns, organizado pela Spea (Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves), que começou em 2004 e penso que continua a ser organizado, mas os relatórios não são publicados desde 2011”. Ou seja, na prática a informação não está disponível.

O ornitólogo acredita que este tipo de censos não pode assentar apenas em voluntários: “Para ser mais consistente e garantir uma continuidade ao longo do tempo, precisam de uma linha de financiamento”.

A falta de divulgação dos dados estende-se a outras espécies, como as aves aquáticas invernantes, ou as aves coloniais, como garças e ibis. Nestes casos, as contagens estão a cargo do ICNF, através do CEMPA (Centro de Estudos de Migrações e Protecção de Aves), mas não tem havido divulgação dos relatórios.

“Hoje em dia, a tecnologia permite disponibilizar essa informação de formas que não são dispendiosas. Se tivermos esses dados publicados, acredito que teremos também cidadãos mais informados e mais sensibilizados para a conservação da natureza.”

 

Há uma nova Lista Vermelha em construção

Sobre a flora, a nova Estratégia Nacional de Conservação da Natureza e Biodiversidade recorda que desde 2001 já foram referidos ou descritos mais de 60 novos taxa para Portugal, no que respeita às espécies de briófitos, “o que mostra claramente a insuficiência de estudos em alguns grupos de plantas ou áreas geográficas”. Os briófitos são um grupo de plantas verdes que não têm raízes nem flores, como é o caso dos musgos.

 

Foto: Helena Geraldes/Wilder

 

O desconhecimento científico estende-se à avaliação do risco de extinção de muitas espécies de plantas vasculares, relata o documento. A esse nível está em curso o projecto da Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental, um projecto conjunto da Sociedade Portuguesa de Botânica e da Phytos-Associação Portuguesa de Ciência da Vegetação, com o apoio do ICNF.

Falta também informação sobre o estatuto de conservação de outros grupos, como os invertebrados terrestres e os peixes e invertebrados marinhos. E quanto aos vertebrados – como répteis, anfíbios, peixes de água doce e mamíferos -, a informação sobre o risco de extinção “encontra-se já parcialmente desactualizada”.

A nova versão da Estratégia de Conservação da Natureza e Biodiversidade reconhece, por isso, a necessidade de mais investigação nestas áreas, ligada a uma estratégia de “produção científica orientada para a colmatação das lacunas de conhecimento”.

O grande objectivo é “apoiar, de modo informado, a prossecução dos compromissos jurídicos e políticos do país em matéria de conservação da natureza, incluindo a biodiversidade e a geodiversidade.”

 

Inês Sequeira

Foi com a vontade de decifrar o que me rodeia e de “traduzir” o mundo que me formei como jornalista e que estou, desde 2022, a fazer um mestrado em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova. Comecei a trabalhar em 1998 na secção de Economia do jornal Público, onde estive 14 anos. Fui também colaboradora do Jornal de Negócios e da Lusa. Juntamente com a Helena Geraldes e a Joana Bourgard, ajudei em 2015 a fundar a Wilder, onde finalmente me sinto como “peixe na água”. Aqui escrevo sobre plantas, animais, espécies comuns e raras, descobertas científicas, projectos de conservação, políticas ambientais e pessoas apaixonadas por natureza. Aprendo e partilho algo novo todos os dias.

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