Foto: Fernanda Gamito

Nas serranias do Sistelo, o que a paisagem não é

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A correspondente da Wilder, Fernanda Gamito, descreve-nos maravilhada as paisagens minhotas do Vale do Vez, mas confessa a sua perplexidade com um projeto de intervenção artística que ali nasceu, nas encostas que enquadram a Paisagem Cultural do Sistelo.

Espetados em prados floridos de camomila-romana, sob o olhar complacente das vaquinhas de raça Cachena, erguem-se, a 10 metros de altura, seis mastros brancos com bandeiras amarelas, espalhados pelo Vale do Vez, nas famosas encostas do Sistelo. O mistério depressa se revela nas placas que acompanham as “instalações”: trata-se de um projeto de intervenção artística, promovido, entre outros, pelo Município de Arcos de Valdevez, cofinanciado pela União Europeia, através do Programa Operacional Regional do Norte (Portugal 2020), e denominado “A Paisagem É”…

Uns meses antes da sementeira de mastros e bandeiras, no final de 2017, tinha sido promulgado pelo Presidente da República o decreto que veio reconhecer a Paisagem Cultural de Sistelo (abrangendo os lugares de Igreja, Padrão e Porta Cova) como Monumento Nacional, a primeira classificação do género atribuída em Portugal. Entre as preocupações refletidas no texto do decreto estava a necessidade de garantir a preservação da autenticidade, perenidade e integridade desta paisagem. 

Antes disso e depois disso, as entidades que gerem o território, vizinho do Parque Nacional da Peneda Gerês e Reserva da Biosfera, trataram de o promover e divulgar como puderam, nas “7 Maravilhas de Portugal” ou mesmo como “pequeno Tibete português”.  

Emoldurando a pequena aldeia de origem medieval, a paisagem de socalcos é realmente monumental. Em todos os guias turísticos, é enaltecido o resultado da relação secular entre o homem e a Natureza, uma “relação eco-sustentada”, bem como a riqueza etnográfica, a par da biodiversidade de flora e fauna, distribuída por espécies selvagens e domesticadas, reafirmando-se a importância da sua preservação e valorização. 

E, contudo, a população local, constituída maioritariamente pelos descendentes dos verdadeiros construtores da paisagem que hoje se propagandeia, não foi consultada sobre a instalação dos desenquadrados mastros de 10 metros de altura, ostentando bandeiras amarelas com dizeres como “do outro lado!” ou “onde”,  que só se lêem se o vento estiver de feição e se a visão for apurada… As opiniões dos residentes e de alguns visitantes dividem-se entre a preplexidade, o desdém ou mesmo a indignação, quando se cruzam com objetos que se espera encontrar em postos de abastecimento de combustível e supermercados, mas não em paisagens protegidas. Posição contrária tem o presidente da Junta de Freguesia que considera o projeto “uma mais-valia para a leitura da paisagem”, presumindo-se que, pelo facto de se tratar de obra artística de autora reconhecida, “acrescenta uma camada de valor” à terra. 

Menos sujeito a práticas artísticas de vanguarda, o Rio Vez, que integra a Rede Natura 2000, corre sereno cá em baixo, no fundo do vale, rodeado de vegetação luxuriante. Em alguns pontos, o Trilho dos Passadiços, que coincide com a parte final da Ecovia do Vez/ Museu ao Ar Livre do Rio Vez, lembra uma selva fresca e luminosa pelo intrincado de fetos gigantes, destacando-se, sobretudo, o feto-real (Osmunda regalis), mas também o feto-do-botão ou feto-do-gerês (Woodwardia radicans), juntamente com as espécies arbóreas ripícolas e com as enormes trepadeiras – as madressilvas, a hera ou o lúpulo-bravo (Humulus lupulus), que se enrola nos amieiros a mais de seis metros de altura, sempre no sentido inverso ao dos ponteiros do relógio. Haverá por aqui lagartos-de-água, trutas, melros-d’água e guarda-rios, mas, da lista de bichos coloridos, apenas se deixa ver a iridescente libelinha gaiteiro-azul (Calopteryx virgo), em tons metálicos de azul e verde.  

Os passadiços ficaram lá para trás e, entre carvalhos, freixos, altíssimos loureiros, aveleiras, amieiros, sanguinhos-das-ribeiras, salgueiros, choupos, teixos, pinheiros-sivestres, os caminhos seguem frescos, em velhas calçadas ou em terra, por moinhos de água abandonados, pontes medievais ou modernas, sempre com o rumor de água por perto; primeiro o rio, depois as levadas ou “regadios”. Junto aos muros que separam os socalcos de milho, plantado aqui desde o século XVI, à sombra das latadas de vinha, crescem expontâneas a hortelã-brava e a erva-cidreira. E, entre as pedras, ainda brilham, coloridas, ao sol do fim de tarde, as últimas flores das dedaleiras e das esporas-bravas.

Quase sem se dar por isso, e sem que seja necessária a ajuda de mastros ou bandeiras, regressa-se à aldeia, atravessando a paisagem como ela é; a tal “paisagem cultural”, talvez marca identitária única no País, esta sim, talhada com mestria de artista, pela mão do homem e pela Natureza.

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