No âmbito de uma série sobre espécies aquáticas invasoras publicada em parceria com o projecto LIFE Invasaqua, Bruno Herlander Martins (CIBIO) e José Teixeira (CIIMAR), investigadores e coordenadores ligados ao projecto H2020 Life Trachemys em Portugal, apresentam-nos uma estrela de televisão que hoje é mundialmente famosa, mas por razões muito preocupantes.
Que espécie é esta?
A tartaruga-da-Flórida (Trachemys scripta) é a espécie mais popular do planeta como tartaruga de água doce (ou cágado) de estimação. Caracteriza-se pela sua pele verde com listas amarelas e por apresentar uma mancha vermelha ou amarela, desde o olho até ao pescoço.
Esta tartaruga é nativa do leste dos Estados Unidos e das zonas adjacentes do nordeste do México, mas tem vindo a ser introduzida na natureza por todo o mundo, alcançando um enorme sucesso a colonizar diferentes ecossistemas de água doce. Isso deve-se em especial à sua dieta omnívora oportunista e generalista – que lhe permite comer os mais diversos alimentos – à facilidade com que se adapta a diferentes climas e habitats e ainda à elevada taxa de reprodução e longevidade. De facto, pode viver cerca de 40 a 50 anos.
A proliferação mundial desta tartaruga, associada aos elevados impactos que está a causar nas espécies nativas, levou aliás a IUCN-União Internacional para a Conservação da Natureza a incluí-la na lista das 100 piores espécies invasoras do planeta.
Mas porque é que estas tartarugas são um problema?
Graças às suas características demográficas, comportamento e características físicas (morfologia), estas tartarugas têm uma elevada capacidade competitiva. Em causa estão por exemplo a baixa idade de maturação sexual – que lhes permite começarem a reproduzir-se ainda muito jovens – e também a elevada fecundidade, mas também o facto de serem maiores e mais agressivas do que os cágados autóctones (nativos de Portugal).
Por esses motivos, têm uma grande vantagem quando competem diretamente por alimentos ou por locais de termorregulação e de nidificação.
Ao contrário das nossas espécies nativas de cágados, nomeadamente o cágado-mediterrânico (Mauremys leprosa) e o cágado-de-carapaça-estriada (Emys orbicularis), a alimentação destas tartarugas é muito mais abrangente, incluindo numerosas espécies de plantas e animais, como insetos e outros invertebrados, anfíbios, répteis, pequenas aves e mamíferos. Isso conduz à predação e competição com as espécies nativas, desregulando assim o equilíbrio e o normal funcionamento dos ecossistemas.
Estas tartarugas podem ainda contribuir para a dispersão de doenças e parasitas que podem afetar as populações nativas de cágados e outra biodiversidade aquática, e até mesmo os humanos.
Como é que a tartaruga-da-Flórida chegou a Portugal e a outros países?
A introdução desta tartaruga fora da sua área natural de distribuição, um pouco por todo o mundo, deve-se principalmente ao facto de ser vendida como animal de estimação e muitas vezes fugir ou ser libertada por quem a comprou. Isto sucede quando os donos não têm condições ou vontade para as continuarem a manter em cativeiro, frequentemente devido às grandes dimensões que estas tartarugas atingem, à sua agressividade, grande esperança de vida ou más condições de higiene.
A produção da tartaruga-da-Flórida em cativeiro, para o comércio internacional de animais de companhia, iniciou-se na década de 1970, mas foi só com a transmissão da famosa série “Tartarugas Ninja”, no final da década de 1980, que a sua comercialização atingiu o pico máximo.
Curiosamente, esta história começa com quatro tartarugas recentemente compradas numa loja de animais por um rapaz, que acidentalmente as deixou cair no esgoto.
A venda é permitida por lei?
Esta tartaruga está incluída, desde o final da década de 1990, no Decreto-Lei nº 565/99 (e na sua posterior atualização – DL 92/2019), que regula as espécies não indígenas de fauna e flora de Portugal. É considerada uma espécie com risco ecológico conhecido, e por isso a sua venda, detenção e libertação são proibidas.
No entanto, a falta de controlo e de aplicação dos regulamentos pelas entidades competentes tem permitido que continuem a ser ilegalmente comercializadas um pouco por todo o país, bem como a sua libertação na natureza. Por esse motivo, a tartaruga-da-Flórida foi já introduzida em diferentes lagoas, rios, ribeiras, parques e jardins públicos de Portugal. A situação é particularmente preocupante num conjunto de lagoas da Ria Formosa e do Algarve, onde se estabeleceram grandes populações reprodutoras desta espécie.
E como se tudo isto não bastasse, a comercialização ilegal de outras espécies de cágados exóticos que apresentam características semelhantes à tartaruga-da-Flórida – incluindo de diferentes sub-espécies desta tartaruga – é cada vez mais frequente. E portanto, o seu aparecimento em vários ecossistemas naturais no nosso país tem vindo também a ser cada vez maior.
Há alguma forma de controlar a expansão destas tartarugas?
O controlo e fiscalização da venda destes cágados, através da aplicação dos regulamentos que já existem, será à partida a forma mais importante para lidar com este problema.
Tendo em vista a conservação da natureza e principalmente a viabilidade das nossas espécies de cágados nativos, é também essencial a realização de uma monitorização continuada das áreas potenciais de ocorrência desta espécie invasora, a deteção precoce da sua presença em novos locais e ainda a remoção desses indivíduos para evitar o estabelecimento de populações reprodutoras. Outra medida importante é o estabelecimento de planos de controle das populações já estabelecidas.
Através dos nossos trabalhos no projeto LIFE-Trachemys, já há mais de 10 anos, foi identificada a presença de grandes populações reprodutoras de tartaruga-da-Flórida no sul de Portugal e definidos e testados os principais métodos e as técnicas mais eficazes de captura e controlo destas tartarugas. Apesar disso, desde então, a aplicação de medidas de controlo em ambiente natural tem sido inexistente, devido essencialmente à falta de financiamento no combate a esta problemática.
Por outro lado, as campanhas de sensibilização e educação ambiental são também extremamente importantes para alertar e educar a população para desincentivar a compra e a manutenção destas tartarugas como animais de estimação, mas acima de tudo evitar a libertação de mais indivíduos na natureza.
E o que pode cada um de nós fazer?
Antes de adquirir um animal exótico, deve-se informar sobre a sua biologia e ponderar se o consegue manter durante todo o seu período de vida. Por outro lado, se possui um animal exótico e já não tem condições para cuidar dele, deve contactar o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) ou o Serviço de Proteção da Natureza da Guarda Nacional Republicana (SEPNA-GNR), para o encaminharem para o local mais apropriado.
Quatro curiosidades:
Dentro do grupo das tartarugas, distinguem-se as tartarugas-marinhas, as tartarugas-terrestres e as tartarugas-de-água-doce. Em Portugal, todas as tartarugas-de-água-doce são designadas de forma comum como cágados, e caracterizam-se por apresentarem um pequeno tamanho (muito menor do que as marinhas), carapaça achatada (para terem mais hidrodinâmica), patas com membranas entre os dedos (adaptadas para a natação) e pescoço comprido e estreito, com capacidade de retração para proteção sob a carapaça.
Os ninhos dos cágados são normalmente escavados nas margens das massas de água, mas estes animais podem deslocar-se de forma ágil até quilómetros de distância da água para encontrarem o melhor local para os seus ninhos.
A tartaruga-da-Flórida pode realizar até três posturas por ano, contendo cada uma em média 15 ovos, ao contrário das espécies nativas em Portugal, que normalmente realizam apenas uma postura e sempre inferior a 15 ovos.
Os cágados em Portugal normalmente realizam a hibernação durante o inverno e a estivação durante o verão. Nestas épocas procuram refúgios e reduzem a sua atividade corporal ao mínimo durante vários dias, para evitarem os períodos de frio ou de calor mais intensos.
Série Espécies Aquáticas Invasoras
Em parceria com o projecto LIFE Invasaqua, a Wilder dá-lhe a conhecer algumas das principais espécies aquáticas invasoras em Portugal. O LIFE Invasaqua é um projecto ibérico co-financiado por fundos comunitários que divulga informação acerca da ocorrência e combate a espécies invasoras.
Recorde o que se passa em Portugal com o siluro, o mexilhão-zebra, a rã-de-unhas-africana, o alburno, a amêijoa asiática, o caranguejo-peludo-chinês, a amêijoa-japonesa, a gambúsia, o lagostim-sinal, a medusa Blackfordia virginica, o lucioperca, o caranguejo-azul, a ludevígia-rastejante, o jacinto-aquático, a íbis-sagrada, o mosquito-tigre-asiático, a pinheirinha-de-água, o visão-americano e a bisnaga.