Com a ajuda das respostas de Miguel Correia, biólogo marinho perito em cavalos-marinhos actualmente ligado à University of British Columbia, no Canadá, fique a conhecer melhor este grupo de peixes tão diferentes.
WILDER: Quais são as principais características que distinguem os cavalos-marinhos dos outros peixes?
Miguel Correia: os cavalos-marinhos são peixes carismáticos devido ao seu aspecto invulgar, pois parecem reunir um conjunto de características que se encontram noutras espécies completamente diferentes: o formato da sua cabeça (semelhante à do cavalo), uma cauda preênsil (macaco), uma bolsa ou marsúpio (canguru) e o movimento ocular independente (camaleão). Em vez de escamas, são cobertos por uma fina pele que se estende à volta das estruturas ósseas e que dão forma ao corpo destes peixes.
Algumas espécies de cavalos-marinhos apresentam ainda espinhos, protuberâncias ósseas ou filamentos cutâneos, que se estendem na extremidade das estruturas ósseas que lhes dão forma. Na cabeça, essas estruturas formam tipicamente uma coroa, cuja forma pode variar de espécie para espécie.
Todos os machos de cavalo-marinho se distinguem das fêmeas pela presença de uma bolsa, uma vez que são eles que carregam os ovos já fecundados.
Outra característica curiosa de todos estes peixes – sejam machos ou fêmeas – é que são desprovidos de dentes e têm um sistema digestivo simples, sem um verdadeiro estômago, alimentando-se de pequenos crustáceos e de outras espécies por meio de sucção, através do focinho.
W: Onde é que são conhecidas populações de cavalos-marinhos nas águas portuguesas?
Miguel Correia: Actualmente, as populações de cavalos-marinhos mais estudadas são as que se encontram na Ria Formosa, no Algarve. Mas existem dados, ainda que escassos, de avistamentos de cavalos-marinhos noutras zonas costeiras de Portugal, tais como nos estuários do Sado, do Tejo, do Arade, do Mira e do Mondego, entre outros locais.
W: O que se sabe actualmente sobre estes núcleos populacionais e o que falta saber ainda?
Miguel Correia: Ainda há muito por saber acerca das populações de cavalos-marinhos nas zonas costeiras de Portugal. Embora se conheça que só existem duas espécies de cavalos-marinhos que ocorrem em Portugal continental – o cavalo-marinho-de-focinho-comprido (Hippocampus guttulatus) e o cavalo-marinho-comum (Hippocampus hippocampus) – ainda existe falta de conhecimento sobre aspectos da biologia, ecologia e comportamento das mesmas.
A Ria Formosa é, sem dúvida, a zona portuguesa onde foram realizados mais estudos no sentido de melhor conhecer as populações de cavalos-marinhos locais. Estes estudos remontam ao início do século, quando uma investigadora canadiana do Project Seahorse desenvolveu o seu doutoramento a estudar essas espécies no local. Foi nessa altura, em 2001, que foi registada a maior densidade populacional das duas espécies de cavalos-marinhos europeus: o cavalo-marinho-de-focinho-comprido e o cavalo-marinho-comum.
No sentido de colmatar essa lacuna, em parceria com a Associação Natureza Portugal (ANP)/WWF, desenvolvemos esforços para fazer um primeiro levantamento das zonas de potencial interesse para estudo das populações de cavalos-marinhos ao longo da costa portuguesa, através do projecto “Cavalos-marinhos desconhecidos”. Este projecto de ciência cidadã pretende não só aumentar o conhecimento acerca dos cavalos-marinhos ao longo da costa portuguesa, como capacitar escolas de mergulho para a recolha de informações, através de censos visuais.
Mais recentemente foi lançado o projeto EUROSYNG, financiado pela União Europeia, para aprofundar o conhecimento dos singnatídeos (cavalos-marinhos e marinhas) não só em Portugal, como também noutros países europeus, desde a Noruega no Atlântico Norte até à Itália e Grécia à mais a sul, no Mar Mediterrâneo.
E de um ponto de vista local, o Projeto CavALMar, financiado pela Câmara Municipal de Almada, irá dar um importante contributo para melhor conhecermos as populações de cavalos-marinhos do Tejo. Será um levantamento populacional que irá abrir portas para estudos futuros, de modo a que melhor se compreendam as necessidades destas espécies emblemáticas, bem como a identificação de ameaças e a recomendação de acções de mitigação no sentido da conservação destas espécies, promovendo ao mesmo tempo a preservação da biodiversidade local.
W: Quais são os principais problemas que ameaçam estes peixes?
Miguel Correia: Os cavalos-marinhos habitam sobretudo zonas costeiras interiores, que são tipicamente impactadas por atividades humanas. Ao longo dos nossos estudos, identificámos algumas ameaças mais importantes, que têm um impacto negativo nas comunidades de cavalos-marinhos locais.
Este estudo foi realizado, sobretudo, como parte do meu doutoramento na Universidade do Algarve. Nessa altura tinha sido identificado um decréscimo acentuado das populações de cavalos-marinhos na Ria Formosa. O meu estudo focou-se em tentar determinar as causas desse mesmo decréscimo, desenvolver acções de mitigação, bem como um conjunto de recomendações no sentido da conservação destas espécies. As principais ameaças encontradas foram a perda de habitat e a pesca acessória.
No entanto, em 2016 foram registados os primeiros relatos de apanha ilegal de cavalos-marinhos para o mercado da medicina tradicional chinesa. Esta ameaça é, de facto, transversal à maioria das espécies de cavalos-marinhos e sem dúvida a mais impactante, sendo responsável pela apanha anual de um valor estimado de 70 milhões de cavalos-marinhos, todos os anos. A apanha de cavalos-marinhos para o mercado da medicina tradicional chinesa está intimamente ligada à pesca de arrasto, uma pesca não-selectiva e que causa destruição no fundo marinho. Esta arte de pesca remove indescriminadamente tudo por onde passa, incluindo vastas porções de habitat essenciais não só para os cavalos-marinhos, mas também para muitas outras espécies.
Além destas ameaças, convém referir a poluição química e sonora e também, com maior prevalência nos últimos anos, o efeito das alterações climáticas que causam variações acentuadas das temperaturas da água, o que potencia o surgimento de espécies invasoras.
W: Quais são as principais medidas para se melhorar a situação dos cavalos-marinhos?
Miguel Correia: Existem várias medidas que já foram implementadas. Desde logo, a inclusão de todas as espécies deste grupo no anexo II da Convenção Internacional do Comércio de Espécies Protegidas (CITES) permitiu que se tentasse regular o comércio de cavalos-marinhos, quer para a medicina tradicional chinesa quer para o mercado da aquariofilia, além dos ‘souvenirs’. Por outro lado, a inclusão desses peixes na Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza permitiu o estabelecimento de uma métrica quanto ao perigo de extinção de cada espécie, alertando os decisores políticos, nalguns casos, para a urgência da implementação de medidas de conservação.
Na Europa, os cavalos-marinhos estão abrangidos nas convenções de Berna e Bona. Alguns países, como Portugal, já implementaram legislação específica que lhes atribui o estatuto de espécie protegida (Decreto-Lei nº38/2021). Isto para além da implementação de áreas de protecção para estes peixes, tais como aquelas que foram delimitadas na Ria Formosa, o principal ‘handicap’ é a fiscalização. De facto, sem esta não se consegue assegurar que a legislação em vigor tenha real impacto na conservação das populações de cavalos-marinhos no país.
W: Os cavalos-marinhos conseguem adaptar-se a viver em ambientes com lixo?
Miguel Correia: O impacto das atividades humanas nas zonas costeiras onde habitam cavalos-marinhos tem sido responsável por alterações em alguns aspectos da ecologia e comportamento destas espécies. Algumas tiveram de se adaptar a ambientes mais impactados pelas atividades humanas, como poluição pelo lixo marinho. Muito deste é composto por elementos provenientes dessas mesmas actividades, incluindo, mas não só, a pesca lúdica e profissional.
A baía da Trafaria é um desses exemplos. A comunidade de cavalos-marinhos residente no porto de abrigo da Trafaria encontra neste local, embora altamente impactado pelo lixo marinho, um sítio abrigado e com estruturas de fixação, onde podem fazer face às correntes marinhas. Mesmo que seja artificial, qualquer estrutura de fixação é importante para estas espécies, já que possuem locomoção limitada quando os comparamos com outros peixes. A sua morfologia única, tal como a modificação da barbatana caudal para uma cauda preênsil, fazem com que estes peixes se desloquem na vertical, dependendo das duas barbatanas peitorais e dorsais para se locomoverem.
Em situações de perda de habitat, como foi identificado na Ria Formosa aquando do meu doutoramento, podem ser consideradas acções de mitigação, como a implementação de estruturas artificiais temporárias. Estas estruturas, já usadas com sucesso na Ria Formosa (mais informação aqui e aqui), permitem a colonização e o estabelecimento de populações de cavalos-marinhos em zonas degradadas.
Este tipo de ações de mitigação já foram usadas para o mesmo fim noutros países tais como a Grécia e a Austrália. No entanto, não pretendem substituir-se ao habitat natural, que deve ser de todas as formas possíveis reabilitado, permitindo assim contribuir para o aumento da biodiversidade local.
W: Porque devemos investir recursos no conhecimento e na conservação destes peixes?
Miguel Correia: Devido ao seu sedentarismo e vida bentónica (no fundo marinho), os cavalos-marinhos são espécies indicadoras por excelência. A monitorização continuada destas espécies permitirá fazer uma avaliação geral do estado atual da biodiversidade local. Eventuais flutuações no tamanho das populações, como já foi registado para a Ria Formosa, poderão indiciar factores de pressão que estão igualmente a ter impactos noutras espécies. Por outro lado, os cavalos-marinhos são espécies bandeira que conseguem atrair a atenção junto das comunidades locais, sendo veículos importantes em acções de sensibilização e promotores de acções de conservação.
Assim, todas as acções que sejam implementadas no sentido de preservar o habitat e assegurar a sobrevivência destes peixes irão beneficiar muitas outras espécies que não partilham do seu carisma, assegurando que as gerações futuras possam desfrutar dos valores naturais tão importantes que Portugal tem para oferecer.