Os dias são curtos, há chuva e vento e as temperaturas estão mais baixas. O mundo natural fica em repouso. Mas será que é mesmo assim? Num passeio atento pelo Jardim Gulbenkian ou outros espaços verdes por todo o país, podemos encontrar sinais de que muitas das espécies do mundo natural continuam em plena atividade nesta altura do ano.
Conheça alguns exemplos que o poderão inspirar a sair de casa e a procurar a natureza nestes dias mais frios, mesmo na cidade:
O lódão-bastardo, a murta e outras plantas enchem-se de bagas
Na verdade, o termo “bagas” é utilizado de forma comum para designar frutos que do ponto de vista botânico são diferentes: pode incluir desde bagas a drupas, cápsulas e outros tipos de fruto, dependendo da planta em questão, explica Carine Azevedo, que trabalha como consultora na gestão de património vegetal e se dedica também à comunicação de ciência.
Entre as árvores e arbustos mais comuns que se enfeitam de bagas na estação mais fria do ano, Carine avança com alguns exemplos: lódão-bastardo (Celtis australis), murta (Myrtus communis), azevinho (Ilex aquifolium), loureiro (Laurus nobilis), sabugueiro (Sambucus nigra), teixo (Taxus baccata), trovisco (Daphne gnidium) e tramazeira (Sorbus aucuparia).
Mas porque é que tanto o inverno como o outono são estações em que há mais riqueza destes pequenos frutos? Uma das razões está relacionada com a dispersão das sementes: “Produzir frutos atrativos durante a estação desfavorável é uma tática eficaz para atrair animais que deles se alimentam”, como é o caso de muitas pequenas aves, aponta. “Ao consumirem os frutos, os animais acabam por dispersar as sementes através dos seus excrementos, contribuindo para a disseminação e regeneração das plantas.”
Por outro lado, como os dias são agora mais frios, “o inverno proporciona um período de dormência propício para que as sementes permaneçam inativas até que as condições se tornem favoráveis para a germinação durante a primavera.”
Várias espécies, aliás, florescem na primavera e no verão mas os frutos só amadurecem na metade mais fria do ano, acompanhando também assim o ciclo de vida dos insetos polinizadores. “Esta estratégia visa atrair esses insetos durante as estações de polinização, garantindo que as flores serão polinizadas, e que como resultado ocorra a produção e maturação de frutos no outono ou inverno.” Para as próprias plantas as bagas são também importantes como “reserva estratégica”, pois “fornecem recursos essenciais durante o período em que a fotossíntese é reduzida devido às condições desfavoráveis”.
Muitos musgos que formam tapetes têm um crescimento enorme
Só em Portugal continental, são conhecidas hoje mais de 700 espécies de musgos, destaca César Garcia, curador da coleção de briófitas do herbário LISU, ligado ao MUHNAC – Museu de História Natural e da Ciência da Universidade de Lisboa.
Nem todos os musgos mostram alterações nesta altura do ano, como é o caso dos que revestem os troncos das árvores. Todavia, especialmente no grupo dos musgos que formam tapetes no solo, muitas espécies apresentam “um crescimento enorme” em períodos de “bastante humidade”, nota este botânico. Entre as mais comuns desse grupo, encontram-se o musgo-trançado-comum (Hypnum cupressiforme), também chamado de musgo-trança, o musgo-sedoso-penado (Homalothecium sericeum) e ainda as espécies Pseudoscleropodium purum e Scleropodium touretii, que não têm nomes em português.
“É comum ouvirmos dizer ‘Este ano há muito musgo para o presépio’, uma frase associada a terem existido boas condições para estas plantas”, lembra ainda César Garcia, que é também coordenador do Núcleo de Jardins Botânicos da Universidade de Lisboa. No entanto, apela este investigador, “é errado colhermos musgos em grande quantidade, especialmente para venda”. É que estas plantas briófitas cumprem vários serviços muito importantes: “Agregam o solo, preservam a água, fixam as sementes das plantas vasculares e criam condições para a sua germinação, além de outros fatores. Por exemplo, têm um papel importantíssimo na recuperação de uma região após os incêndios.”
É tempo para a reprodução de vários caracóis
É ao longo desta época do ano, quando há mais humidade, que muitas espécies de caracóis terrestres se reproduzem e põem os seus ovos, em especial nas áreas mais a sul da Península Ibérica, descreve Gonçalo Calado, professor na Universidade Lusófona.
Por aqui, muitos caracóis reproduzem-se no inverno e estivam no verão, ou seja, acasalam na metade mais fria do ano e ficam imóveis e dormentes quando o calor aperta, um comportamento que se prevê que começará a ficar comum também no norte da Península Ibérica, à medida que as alterações climáticas progredirem.
Uma nota curiosa: estes moluscos são considerados hermafroditas incompletos, uma vez que conseguem assumir tanto o género sexual masculino como o feminino quando chega a época de acasalamento, mas necessitam um do outro para conseguirem conceber.
De cerca de uma centena de diferentes espécies de caracóis terrestres conhecidos hoje em Portugal continental, três das mais comuns, identificadas pela plataforma de ciência cidadã Biodiversity4All, são a caracoleta (Cornu aspersum), o caracol-das-cervejarias (Theba pisana) e o caracol-leitoso (Otala lactea).
Além dos caracóis, também muitas lesmas – semelhantes aos primeiros, mas sem casca externa – ficam mais ativas depois de uma chuvada ou em noites húmidas.
Apesar de serem considerados uma praga por muitos horticultores, tanto caracóis como lesmas têm papéis importantes nos ecossistemas, alimentando-se de detritos vegetais, fungos, insetos e centopeias. São também um alimento importante para inúmeros animais, desde os ouriços-cacheiros e os texugos às cobras e aos lagartos, pirilampos, sem esquecer inúmeras aves, como os melros e os estorninhos.
A melhor altura para observar piscos-de-peito-ruivo e outras aves
Praticamente metade das 42 espécies de aves conhecidas no Jardim Gulbenkian são residentes, permanecendo em Portugal ao longo de todo o ano, explica João Eduardo Rabaça, ornitólogo e professor universitário, no seu livro “As Aves do Jardim Gulbenkian”.
Todavia, os números de algumas destas aumentam nos meses de inverno devido à chegada de aves das mesmas espécies vindas de outros países europeus, em busca de temperaturas mais amenas e de alimento. O pisco-de-peito-ruivo (Erithacus rubecula), a felosa-comum (Phylloscupus collybita) e a toutinegra-de-barrete (Sylvia atricapilla) são exemplos de aves que se tornam mais fáceis de observar nesta estação.
Existem ainda outras espécies que permanecem em Portugal apenas no tempo mais frio, migrando mais tarde para as áreas onde se costumam reproduzir. É o caso do estorninho-malhado (Sturnus vulgaris), do lugre (Carduelis spinus) e do tordo (Turdus philomelos).
Este artigo insere-se na série “Jardins para a Vida Silvestre”, uma parceria entre a Wilder e a Fundação Calouste Gulbenkian.