Pedro Andrade, investigador no BIOPOLIS-CIBIO (Universidade do Porto), explica-nos como a genética pode ser uma autêntica caixa de surpresas. Tanto no que respeita às pequenas lagartixas, como também quanto às origens da espécie (ou das espécies?) humana.
Poucas imagens capturam a essência do pensamento evolutivo como a árvore rabiscada por Charles Darwin, num de muitos momentos que passou a pensar sobre a sua teoria de seleção natural. Neste esquema, Darwin viu a evolução das espécies como um conjunto de eventos de diversificação, com cada espécie unida às outras através do tempo pela existência de antepassados comuns partilhados.
Este pensamento da evolução das espécies como uma árvore, que se diversifica e que gera novos ramos com o passar do tempo, é uma poderosa metáfora para o processo evolutivo. Assim, ao longo do tempo, diferentes processos contribuem para adicionar ou subtrair diversidade genética às populações naturais. Se o balanço destes processos levar a uma alteração da composição genética das populações, essas poderão modificar-se.
Estes processos de divergência e modificação podem afetar todas as populações de uma espécie, que evolui assim como uma unidade, ou então podem estar associados a populações que se separam. Neste último caso, se a partilha de informação genética deixar de acontecer, as diferentes populações divergem progressivamente até se tornarem espécies distintas.
Da árvore de Charles Darwin às hipóteses filogenéticas atuais – ao longo do tempo os organismos diferenciam-se e divergem uns dos outros, aumentando a complexidade e distância entre os ramos da árvore da vida. Mas será esta visão uma simplificação do processo de divergência entre espécies?
A evolução reticulada das lagartixas
Como vimos no artigo anterior desta série, os investigadores usam a informação genética das espécies atuais para reconstituir estes eventos antigos de divergência – uma maneira de recuar no tempo a partir das “folhas” para descobrir os “ramos”, até chegarem ao “tronco” da árvore da vida. Esta é uma visão muito prática do processo de diversificação biológica, mas a simplificação pode muitas vezes ser enganadora.
É o que acontece com as lagartixas-dos-muros, do género Podarcis. Estas lagartixas são dos répteis mais abundantes e diversos da Bacia Mediterrânica, e quase todos os leitores já terão visto algumas nos muros dos seus quintais ou no meio da rua, a caminho do trabalho.
Atualmente reconhecem-se mais de 25 espécies de lagartixas-dos-muros, mas a taxonomia tem sofrido vários ajustes nos últimos anos, com a descoberta de uma grande diversidade dentro desse grupo. Não só têm sido elevadas ao estatuto de espécies linhagens que antes eram consideradas apenas como subespécies ou populações diferenciadas, como também as próprias relações de parentesco entre diferentes linhagens não são consensuais dentro dos vários estudos que os cientistas têm realizado.
Uma parte deste problema está relacionada com o facto de a maior parte desses estudos ainda usar informação limitada: o genoma de uma lagartixa tem cerca de 1500 milhões de pares de nucleótidos (os “A”, “C”, “T” e “G” que compõe a informação genética passada de pais para filhos), mas a maior parte dos estudos usa fragmentos com apenas alguns milhares de nucleótidos. Se pegássemos num grande livro de receitas de bolos e escolhêssemos dez ingredientes à sorte, surpreenderia se não conseguíssemos adivinhar o tipo de refeições de que trata o livro?
Mas se olharmos para a totalidade da informação genética? Dentro de cada espécie de Podarcis, em média 1% das “letras” do seu genoma são variáveis – uns incríveis 15 milhões de variantes genéticas. Certamente este excesso de informação deveria ser suficiente para nos dar uma grande certeza sobre como realmente evoluíram as espécies.
Não exatamente. Quando um grupo de investigadores olhou para um conjunto de genomas completos de várias espécies destas lagartixas, e reconstituiu as relações de parentesco entre as espécies, efetivamente encontraram um padrão predominante, relacionado com os principais padrões de distribuição geográfica das espécies. Por exemplo, as lagartixas-dos-muros que ocorrem na Península Ibérica e Norte de África são mais aparentadas entre si, e o mesmo acontece com as espécies que habitam nos Balcãs.
Mas quando olharam com maior detalhe encontraram também um grande conjunto de discrepâncias. Nomeadamente, descobriram que analisando diferentes porções do “livro de receitas” das lagartixas de cada vez, muitas vezes o padrão de parentesco entre as espécies mudava. Era como se alguém tivesse lá colocado ingredientes inesperados: no capítulo dos bolos de chocolate algumas receitas continham afinal maionese, e no capítulo das receitas de sopas algumas delas tinham caramelo.
Saindo das metáforas culinárias, os números ajudam também a perceber a escala deste cenário estranho: ao analisarem os genomas das diferentes lagartixas-dos-muros em muitos pedaços mais pequenos, descobriram que o “padrão normal” de parentesco – o que seria de esperar que acontecesse – só ocorre em cerca de 9% do genoma. Nos restantes 91%, as espécies parecem emparelhar de formas inesperadas. A razão mais provável terá sido a ocorrência, ao longo dos milhões de anos em que essas lagartixas foram divergindo, de vários momentos em que ainda assim encontraram-se e hibridaram, acasalando.
Quando um grupo de animais evolui e se diversifica, e novas espécies vão surgindo, a expectativa tradicional é que estas se tornem progressivamente mais diferentes entre si e independentes. Mas a verdade é que muitos conjuntos de espécies, mesmo neste caminho de progressiva diferenciação, continuam a manter a capacidade de hibridar e gerar descendentes férteis. Ao longo das gerações, estes cruzamentos entre espécies, aliados à mistura de material genético que ocorre durante a formação das células sexuais, fazem com que partes do material genético de uma espécie possam permanecer como relíquias no património genético de outra espécie.
No caso das lagartixas-dos-muros, estes eventos de hibridação parecem ocorrer de forma relativamente frequente entre várias linhagens, gerando uma “árvore da vida” que não é bem uma árvore. Na verdade, assemelha-se mais uma rede de interligações entre espécies que se mantêm unidas ao longo de quase 20 milhões de anos de diversificação.
Das lagartixas para os humanos
Estamos habituados a pensar na hibridação entre espécies como um evento que gera indivíduos inviáveis, que serão inevitavelmente removidos da natureza pela ação da seleção natural. Apesar de muitas vezes isto ser verdade, cada vez mais estudos têm demonstrado que a hibridação entre espécies diferentes é um evento relativamente comum e com consequências importantes para a evolução das espécies, já que muitas vezes permite a transferência de material genético que ajuda à adaptação a novos ambientes. Para exemplos disso, basta olharmos para o espelho…
Hoje em dia somos a única espécie de humano, mas por estranho que pareça, há dezenas de milhares de anos esse não era o caso. Da mesma forma que hoje em dia um leão se pode cruzar com um leopardo ou um tigre, todos membros do género das panteras, também antigamente os humanos modernos se terão cruzado com outros tipos de humanos, como os neandertais ou os denisovanos.
Recentemente, com a descoberta de material genético desses humanos antigos, foi possível descobrir que, apesar de extintos, parte do legado genético destas espécies sobrevive em nós. Nas populações euroasiáticas, cerca de 1 a 4% do nosso material genético tem origem neandertal, uma indicação de que as duas espécies hibridaram, e que apesar de o legado neandertal ter em larga medida desaparecido, uma pequena parte continua a existir em nós.
O exemplo mais conhecido destes eventos de hibridação entre humanos na adaptação a novos ambientes está relacionado com a capacidade de adaptação a altas altitudes nos tibetanos. Na generalidade das populações humanas, a aclimatização à baixa concentração de oxigénio sentida em altitudes elevadas (como no planalto tibetano) leva a alterações na fisiologia dos organismos, nomeadamente ao aumento nos níveis de hemoglobina no sangue (para aumentar a capacidade de transporte de oxigénio). No entanto, se estas alterações forem mantidas durante muito tempo dão origem a problemas fisiológicos, uma vez que estão associadas a uma maior viscosidade do sangue, e consequentemente maior risco de problemas cardíacos.
Quando se tornaram habitantes permanentes do planalto tibetano, os humanos tiveram que arranjar soluções para este problema. Nomeadamente, precisaram de tornar o transporte de oxigénio mais eficiente, sem terem que aumentar os níveis de hemoglobina. De acordo com esta necessidade, as populações humanas que vivem nesta região possuem variantes genéticas num gene chamado EPAS1, permitindo uma maior capacidade de transporte de oxigénio pela hemoglobina.
Quando os cientistas analisaram a sequência de DNA que continha as mutações genéticas que conferem adaptação nos tibetanos, repararam que eram muito diferentes de qualquer outra população humana atual. No entanto, encontraram eventualmente uma correspondência – não com um humano atual, mas com um pré-histórico. Nomeadamente, as mutações adaptativas no gene EPAS1 dos tibetanos parecem ter vindo dos denisovanos, uma espécie antiga de humano que terá vivido na Ásia entre a Rússia e o Laos, possivelmente até há cerca de 50.000 anos atrás.
Algures no passado, um antepassado dos tibetanos deverá ter-se cruzado com um denisovano, e apesar de a maior parte do legado genético destes últimos ter eventualmente desaparecido ao longo das gerações seguintes, a “receita” para produzir uma hemoglobina mais adaptada à altitude foi mantida no património genético da população.
Esta é uma demonstração de como os cientistas podem encontrar “fósseis” da vida antiga até mesmo nas nossas células. E também uma demonstração de como, muitas vezes, juntar maionese a uma receita de bolo de chocolate pode fazer maravilhas.
Referências
Huerta-Sánchez, E., Jin, X., Asan, Bianba, Z., Peter, B. M., Vinckenbosch, N., … & Nielsen, R. (2014). Altitude adaptation in Tibetans caused by introgression of Denisovan-like DNA. Nature, 512(7513), 194-197.
Yang, W., Feiner, N., Pinho, C., While, G. M., Kaliontzopoulou, A., Harris, D. J., … & Uller, T. (2021). Extensive introgression and mosaic genomes of Mediterranean endemic lizards. Nature Communications, 12(1), 2762.
A nova série “Está nos genes”, sobre a genética da vida selvagem, é da autoria de Pedro Andrade, investigador em biologia evolutiva no BIOPOLIS-CIBIO – Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos, onde estuda a evolução e genética de animais selvagens e domésticos. Descubra aqui mais artigos deste cientista.