Paulo Catry, professor e investigador do ISPA – Instituto Universitário, oferece-nos vislumbres da natureza que reveste os seus dias. Nesta crónica fala-nos do que andam a fazer os gaios no outono, estes jardineiros d’ouro candidatos ao prémio dos maiores plantadores de árvores da Europa.
Lisboa, 24 outubro 2021
Por entre prédios e tráfego, os gaios andam embrenhados nas suas lides. Estes gaios urbanos surpreendem, de tão taciturnos, parece que perderam o pio. Também por serem poucos, mal se dá por eles. Mas são precavidos, tanto quanto os vociferantes primos que ficaram lá na terra. A labuta de outono é para todos, aqui e nas serranias. As bolotas estão no auge, ou perto disso, e há quem tenha estimado que um único gaio pode enterrar três mil bolotas num mês. Por vezes chegam a viajar mais de um quilometro para esconder uma só bolota. Que canseira! De sol a sol, como dantes se praticava entre os ganhões.
Estudos em Espanha mostram que de entre os Quercus comuns aqui pelo sul da Península, as bolotas das azinheiras são as mais apreciadas, as dos sobreiros e as dos carvalhos-cerquinhos são intermédias, as dos carrascos ficam para o fim*. Os gaios também preferem bolotas grandes às pequenas, mas o tipo de bolota é o que mais interessa: antes uma de azinheira que seja pequena e saborosa, que uma de carrasco, mesmo que gorda, luzidia e… desenxabida.
Em Monsanto, no Parque do Calhau, os pássaros habituaram-se ao pessoal do jogging, a desinibição propicia uma observação que de outra forma seria difícil. Chega um gaio, poisa sob aquela copa, olha para mim de relance sem prestar atenção e concentra-se nas bolotas espalhadas no chão. Estica-se, pega numa com o bico, sopesa por um segundo, mas não lhe agrada, deixa-a cair. Agarra noutra, esta sim, lá vai ele plantar mais uma! O movimento repete-se, com triagens sempre ponderadas, havendo tanta oferta não vale a estafa de acartar material de segunda categoria.
Sendo tímidos, os gaios revelam-se em geral difíceis de observar em liberdade; que pena, tanta complexidade comportamental típica de corvídeos que não se vê. Experiências em cativeiro demostram, por exemplo, que um gaio macho consegue perceber o que vai na cabeça da sua fêmea, mesmo quando os desejos dela são diferentes dos seus: oferece-lhe de preferência não o que lhe apetece a ele, mas antes uma sobremesa que a desenjoe do principal repasto que ela acabou de consumir **.
Desconfiados são, os gaios têm as suas razões. Foram perseguidos. Isto de haver gaios dentro de Lisboa é novo, começou há uns 20 ou 30 anos. Antes disso, eram difíceis de encontrar até fora da cidade, em boa parte da região saloia, por vezes ouvidos, mas pouco vistos. E agora aqui andam eles, asas tão redondas, quando batem parecem bolas de penas que vão escoltando a ave de cada lado. Com cores mesmerizantes, raiado de azul e preto nas coberturas das primárias.
Um pisco que come uma baga de aroeira (ou um tordo que come uma azeitona) acaba por expelir a semente, o cerne de uma nova planta mortinha por nascer e crescer. Um serviço óbvio de dispersão, ninguém se queixa. Um gaio que come uma bolota é um predador assassino! bradam com veemência os ativistas mais exigentes, não sobra vida depois da refeição.
Predam sim, tantas bolotas, carvalhos, sobreiros e azinheiras que não chegam a crescer. E as outras, arrecadadas, escondidas dos olhos dos demais predadores, mas não consumidas? Mesmo que aos gaios não falhe a memória, que se comprovou ser prodigiosa, ficarão sempre bolotas enterradas e abandonadas por excesso de previdência ou de gula no planeamento outonal: afinal não eram precisas tantas reservas! Acresce que os gaios não são eternos, há sempre aqueles que, vítimas do açor, da idade ou do inverno, deixam um legado de centenas e centenas de bolotas bem semeadas, prontas para germinar na primavera.
Os gaios são óbvios candidatos aos jardineiros d’ouro (nunca ouviram falar do galardão?), porventura com o prémio dos maiores plantadores de árvores da Europa; ou da medalha da luta pela fixação do carbono.
Do carbono!? Os gaios não querem saber. Gritam alto quando lhes apetece, abastecem celeiros que viram jardins, escolhem os acepipes certos para as namoradas, riem-se às gargalhadas. Adivinha-se que por cá andarão após termos ido embora, acartando bolotas por outonos afora.
* Pons J, Pausas JG. 2007. Acta Oecologica 31.
** Ostojić L et al. 2016. Communicative & Integrative Biology 9
Saiba mais.
Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, na série Crónicas Naturais e também publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.