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Baleia de Bico de Cuvier. Foto: H2o Madeira

Vigia de cetáceos, uma nova profissão para ajudar a conservar os reis do oceano

01.03.2019

Higino Faria é vigia de cetáceos. Com poderosos binóculos, a partir da costa, varre o mar que rodeia a ilha da Madeira à procura de baleias e golfinhos. Protege-os da maior pressão das embarcações e garante o respeito por estes fantásticos animais.

 

Escolhi ser vigia de cetáceos, embora a minha formação seja outra. 

Observador de costa desde 2012, altura em que praticamente só trabalhava no verão para financiar os estudos e para me manter em contacto com a natureza, abracei esta profissão em 2015. Na altura desempregado, entendi que havia possibilidades de criar o meu próprio emprego, já pensado por outras pessoas ligadas a este ramo. 

 

Vigia em descanso, Ponta do Sol. Foto: Nuno Rodrigues

 

Os meus objetivos  – iguais aos dos meus colegas, skippers e vigias, com quem muito aprendi e continuo a aprender  – acompanham os desígnios das entidades decisoras da região: fazer uma reserva de cetáceos com 635 mil hectares nas águas costeiras e oceânicas em torno do arquipélago da Madeira e sub-arquipélago das Selvagens. 

A candidatura a Sítio de Interesse Comunitário (SIC), no âmbito da Rede Natura 2000 – Diretiva Habitats, foi tornada pública no início de janeiro de 2017. Esta é uma iniciativa que partiu de anos de investigação desenvolvida pelo Museu da Baleia da Madeira. Para que um estatuto se transforme em algo real, isto é, numa Zona Especial de Conservação, considero absolutamente imprescindível que este ofício, relativamente desconhecido na sua variante moderna depois de extinta a caça à baleia, seja incentivado como eco-serviço que é e que a marca Madeira whalewatching seja ainda mais responsável.

 

O sucesso da Madeira na observação de cetáceos 

Conhecida pelas deslumbrantes falésias, cabos, cascatas e incontornável floresta Laurissilva, Património Mundial da UNESCO, a ilha vulcânica da Madeira oferece em todo o seu perímetro costeiro pontos ideais para a observação da atividade no litoral, no ar e na superfície do oceano. 

 

Baleia de Bico de Cuvier. Foto: Lobosonda Madeira Whale Watching

 

O maciço montanhoso central – com o seu cume, o Pico Ruivo, a atingir os 1.861 metros de altitude – garante outro fator decisivo no sucesso e reconhecimento internacional das atividades marítimo-turísticas nos mares da ilha, ao impedir que os ventos predominantes de norte, nordeste, este e sudeste fustiguem, excessivamente, as águas meridionais em toda a sua extensão.  

A estes ventos do quadrante nordeste, os mais antigos homens do mar – em especial os da maior vila piscatória da ilha, Câmara de Lobos – chamam “brisa”, dizendo que “vão para a brisa” quando rumam para leste. 

O efeito de barreira e corredor que desacelera e acelera o vento, seja este constante ou de embate (térmico), causado pela volumetria da ilha da Madeira, não se verifica da mesma maneira, por comparação, na ilha do Porto Santo, por ser mais baixa. Mais a sul, sudoeste e até mesmo na extremidade noroeste, no Mar do Meio, ficam, da primavera ao outono, vastas áreas de mar sereno e cristalino para as embarcações poderem navegar, até à linha do vento, à procura de cetáceos, tartarugas, aves marinhas e outras criaturas subaquáticas. 

 

Vigia num Arrife, na Ponta do Sol. Foto: Maria Paulo

 

A estes fatores de orografia e clima, somemos outro: a riqueza e profundidade do oceano Atlântico que possibilita a ocorrência de uma grande diversidade de cetáceos, criaturas que maravilham o homem desde a Antiguidade Clássica. Quando todas as condições se conjugam (como por exemplo o vento, luz, temperatura da água e abundância de alimento), a Madeira é, sem a menor dúvida, um dos paraísos mundiais do whalewatching.  

Posicionados em locais específicos, a cotas de altitude adequadas e com binóculos poderosos, os vigias dominam grandes áreas, localizando e monitorizando as baleias, os golfinhos e até a ameaçada foca-monge ou lobo marinho (Monachus monachus), animais que são vistos, uma vez por outra, junto à costa, a descansar à superfície ou mesmo dentro das marinas. A procura turística por estes ameaçados animais é praticamente inexistente, pois a colónia de animais que escapou à extinção no espaço do arquípélago mantêm-se reduzida e dificil de avistar.  

 

Vigia em trabalho de observação, Ponta do Sol. Foto: Nuno Rodrigues

 

Para além da informação básica relativa à localização dos animais, o trabalho dos vigias de costa é de grande importância, tanto por regular o tráfego marítimo nas áreas de descanso, alimentação e deslocação dos cetáceos, como por contribuír para a eficiência energética. Eles não só localizam e informam as tripulações, como atuam, se desempenharem os serviços com rigor, como moderadores, guiando as suas embarcações na imensidão do mar alto a velocidades adequadas até aos animais, distribuindo-as por grupos distintos e fazendo, quando necessário, alguma pressão, direta ou indireta, para que os tempos legais de observação sejam respeitados, entre outras informações úteis que podem passar às tripulações durante as manobras no mar alto e entidades que regulam a atividade. O trabalho em equipa é a chave! 

Importa aqui diferenciar os observadores a bordo de embarcações de maior porte –  mais lentas, como catamarãs, veleiros e iates – dos observadores que desenvolvem serviços de informação costeiros. As embarcações que usam observadores a bordo limitam-se, nem sempre mas muitas vezes, a procurar no horizonte sinal de outras embarcações, justamente os semirrígidos que operam com vigias de costa, como eu. Contudo, estas embarcações, em especial os catamarãs, também vendem taxas de sucesso elevadas devida à abundância de animais e ao fato de permitirem uma boa estabilidade em condições bastante adversas de vento e vaga, condição indispensável para uma boa localização a partir do mar, em especial quando as neblinas envolvem a ilha e o trabalho do vigia de costa chega a ser infrutífero. Ainda assim, trata-se, sem dúvida, de um outro produto no que toca ao whalewatching: menos avistamentos e menor duração acumulada respetiva! É com os semirrígidos que os vigias de costa alcançam os melhores resultados e é para eles que estes viram as suas prioridades de estatística e monitorização.

 

2018, um ano difícil para o whalewatching na Madeira

Desde que comecei a trabalhar com regularidade, 2018 foi o ano mais difícil para a localização costeira de baleias e golfinhos nas águas da ilha da Madeira. 

 

Baleia de Bico de Blainville. Foto: Lobosonda Madeira Whale Watching

 

Abril, maio e junho foram meses memoráveis com, pelo menos, dois avistamentos em terra e no mar de Baleia-de-bossa (Megaptera novaeangliae), partilhados com embarcações do porto de recreio do Funchal, e outros avistamentos de enormes grupos de Golfinho-riscado e Golfinho-comum-de-bico-curto (Delphinus delphis L.), de alguns grupos de Grampos (Grampus griseus), assim como de alguns Finbeques, nome tradicional na Madeira para os exemplares da Baleia-comum (Balaenoptera physalus) e da Baleia-de-bryde (Balaenoptera edeni) e Cachalote (Physeter macrocephalus). 

Pelo contrário, julho, agosto, setembro e outubro foram meses de muito trabalho e menos animais do que o normal. A fraca ocorrência do Golfinho-pintado-do-atlântico (Stenella frontalis) foi a mais notada pela lente dos vigias da costa sul da ilha, mas igualmente notada por skippers e clientes que os procuram pelo comportamento curioso e brincalhão. Esta é uma das duas espécies com as quais é permitido o snorkeling com o apoio de embarcações de operadores licenciados, conforme legislação específica regional. A outra com a qual é permitida o snorkeling é o Golfinho-comum.

 

Baleia de Bico de Cuvier. Foto: H2o Madeira

 

Entre junho e outubro foram avistados alguns grupos de Caldeirão (Steno bredanensis), mas não tantos como noutros anos. No Funchal, os vigias receberam da parte das tripulações relatos de alguns avistamentos de Cachalote-pigmeu (Kogia breviceps), mas sem foto-identificação. Na verdade, os vigias observam muitas vezes a partir de terra animais que parecem ser exemplares desta espécie, que é bastante esquiva.  

Outra raridade voltou a ser confirmada na Madeira em 2018, a Falsa-orca (Pseudorca crassidens) – que avistei nas águas da Calheta no verão de 2017 –, uma espécie supostamente mais recorrente que o seu parente mais pequeno, a Orca-pigmeia (Feresa attenuata), avistada por uma empresa da Calheta pelo menos uma vez. Estes avistamentos estão confirmados por foto-identicação. 

 

Binóculo de longo alcance, Ponta do Sol. Foto: Nuno Rodrigues

 

Na viragem de julho para agosto, em pleno período estival, quando a água mais aqueceu e eram esperados grandes grupos de golfinho-pintado, caldeirão e muitas baleias-de-bryde, como noutros anos, foi justamente quando todos os que trabalham em terra ou no mar sentiram uma mudança no panorama de avistamentos, em especial a oeste. Os golfinhos-pintados quando apareciam, estavam bastante fora de alcance e as baleias-de-bryde, abundantes em junho, subitamente escassearam ou apareciam a mais de 10 milhas da costa, surgindo pontualmente algumas baleias-sardinheiras na área normal de operações. 

Reflexo destas alterações, certamente resultantes de competição por alimento e mudanças na cadeia alimentar que caberão aos biólogos investigar, os vigias começaram a “esforçar mais a vista”, como se diz em linguagem corrente. O trabalho começou a ser menos estimulante, com os vigias a “recusar a lente” durante as sessões de observação, um comportamento involuntário fruto do desânimo e do desgaste ocular diário. Muitas vezes tiveram que percorrer dezenas de quilómetros de estrada por dia para localizar os animais, sujeitos às vicissitudes do trânsito e a outras condicionantes do ambiente.  

Para piorar surgiram os dias de canícula – durante os quais os vigias se refugiam à sombra de chapéus de sol fixos ou portáteis e mesmo de árvores, para minimizar as consequências do intenso “calor do cão” –, acompanhados de intensas neblinas que tornam praticamente impossível olhar para além das 2 milhas náuticas, com os termómetros a passar os 30 graus. 

Durante outubro os avistamentos não melhoraram. Mas o arrefecimento da água em novembro, por alguma razão, parece ter propiciado o movimento de vai e vem dos grupos de Roazes (Tursiops truncatus) e Baleias-piloto (Globichepala macrorhychus) ao longo da costa sul da ilha. Apareceram também alguns grupos grandes de cachalotes, grupos bastante significativos de golfinhos-riscados e um grupo de cinco Orcas (Orcinus orca), com a presença confirmada de um macho, pelo menos, nas águas de Santa Cruz e Funchal, no dia 21 de novembro. 

Até aos últimos dias dezembro, até à chegada dos primeiros golfinhos-comuns, a situação manteve-se parecida: cachalotes, roazes, baleias-piloto, golfinhos-riscados e alguns, mas menos, golfinhos-pintados.

 

À procura das baleias-de-bico

Um dos aspetos positivos destas alterações no panorama dos avistamentos, talvez mais para a ciência do que para o turismo, foi o de os vigias procurarem mais baleias-de-bico. 

Nos meses do verão e do outono, sem roazes e baleias-piloto, os operadores não tinham outra alternativa que não procurar garantir avistamentos. Foram, então, batidos recordes de avistamentos de baleias-de-bico, os verdadeiros campeões do mergulho na classe Mammalia, sobretudo os zífios. Estes chegam a superar os cachalotes, descendo por mais de uma hora até à escuridão absoluta dos 2.000 ou mais metros de profundidade. 

Embora tenhamos bons números de partilha nos meses de inverno, pelas mais diversas razões, a primavera, o verão e o outono (início), são o período do ano mais propício para localizar e observar a partir de terra ou a bordo de uma embarcação estes magníficos mamíferos, adaptados às condições extremas das profundezas e ainda relativamente desconhecidos da maioria das pessoas. 

 

Baleia de Bico de Blainville. Foto: Lobosonda Madeira Whale Watching

 

Graças ao trabalho que desenvolvo em parceria com outro colega no âmbito da criação de um observatório costeiro independente, mas dependente do sucesso de todas as empresas e centros de investigação aos quais podemos prestar os nossos serviços; entre  maio e outubro de 2018 foram partilhados, por seis operadores distintos das marinas do Funchal e Calheta, 65 avistamentos de Baleia-de-bico-de blainville (Mesoplodon desinrostris), 5 da rara Baleia-de-bico-de-cuvier ou Zífio (Ziphius cavirostris) e 1, confirmado, da raríssima Baleia-de-bico-de-sowerby (Mesoplodon bidens). Cerca de 32 (ou mais, porque possivelmente não registamos todas as vezes que vimos de terra baleias-de-bico no mar) avistamentos feitos de baleias-de-bico a partir de terra não foram possíveis de partilhar. Sendo impossíveis de partilhar ficaram, nalguns casos, dúvidas relativamente à(s) espécie(s) de baleia(s)-de-bico observada(s). 

Dos 71 avistamentos partilhados, 13 foram os únicos nas viagens respetivas, ou seja, não foram vistas outras espécies de cetáceos pela tripulação e clientes a bordo que não baleias-de-bico, sendo 2 avistamentos desses de Baleia-de-bico-de-cuvier. Graças às baleias-de-bico os turistas que embarcaram nessas 13 aventuras tiveram a experiência de observar de perto criaturas consideradas raras, que muitos entusiastas do whalewatching do mundo inteiro não tiveram ainda a oportunidade de ver. 

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