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Trabalhando com a vida selvagem: anilhar aves limícolas

22.03.2021
Anilhagem nas Salinas do Samouco. Foto: Ricardo Jorge Lopes

Afonso Rocha e Ricardo Jorge Lopes foram surpreendidos ao terem recapturado o mesmo fuselo, quase 12 anos depois, no Estuário do Tejo. Estes dois investigadores contam como é anilhar aves limícolas.

WILDER: A sessão de anilhagem onde capturaram aquele fuselo, pela primeira vez, em 2006, foi a vossa primeira sessão de anilhagem de sempre? Quantas já terão feito na vida?

Afonso Rocha: Não foi a minha primeira sessão de anilhagem mas foi a primeira sessão de limícolas que participei, na altura ainda como aprendiz de anilhador. Obtive a credencial de anilhagem no ano seguinte e a partir daí já fui responsável pela captura e anilhagem de cerca de 27 mil aves, maioritariamente em Portugal mas também em locais distantes como a Islândia ou arquipélago dos Bijagós na Guiné-Bissau onde nos últimos 3 anos anilhámos mais de 2 mil aves limícolas.

Ricardo Jorge Lopes: Confesso que nunca contei quantas aves e sessões de anilhagem já fiz. Capturei e anilhei milhares de aves desde 1996, no âmbito de vários projectos de investigação, e cada vez é única, quer pelos locais (Portugal continental, Macaronésia, Marrocos, Guiné-Bissau, África do Sul, Namibia), habitats (florestas, caniçais, salinas, desertos, praias, zonas húmidas), aves (passeriformes, aves limícolas, ralideos, aves marinhas, etc.) ou mesmo pelas pessoas envolvidas e circunstâncias (por exemplo, muitas das sessões de captura de aves limícolas são nocturnas).

W: O que vos entusiasma mais na anilhagem de aves? Como e porque começaram?

Ricardo Jorge Lopes: Comecei a aprender a capturar e anilhar aves em 1994, ainda durante a licenciatura, principalmente porque era uma oportunidade para melhorar os meus conhecimentos sobre as espécies de aves e os seus habitats, como complemento à sua observação e devido ao seu potencial para investigação. De uma maneira natural, evoluí para anilhador credenciado desde 1998, pois as minhas actividades de investigação têm sempre implicado a recolha de amostras para genética, parasitologia e toxicologia ou a marcação de aves com transmissores ou anilhas coloridas para identificação individual. É importante sempre realçar que a anilhagem científica de aves, como qualquer qualquer actividade que involva a manipulação de seres vivos selvagens, só faz sentido se houver objectivos científicos bem justificados para a sua realização, sendo importante sempre minimizar o número de animais capturados e o tempo de manipulação para assegurar o seu bem estar. 

Afonso Rocha: A anilhagem científica de aves é uma técnica que nos permite identificar e estudar as aves. Foi no âmbito do estágio final da licenciatura em Biologia, em que o objetivo era estudar a biologia reprodutora do borrelhos-coleira-interrompida na costa arenosa de Aveiro, que em 2003 capturei e marquei as minhas primeiras aves. Sou anilhador credenciado desde 2007. A partir dessa data comecei a anilhar outros grupos de aves no âmbito de diversos projetos, que não apenas estritamente científicos, nomeadamente a monitorização de aves através de programas de capturas regulares, por exemplo o Projeto das Estações de Esforço Constante ou em programas de educação ambiental.

W: Este fuselo foi recapturado quase 12 anos depois. Já tinham encontrado uma ave anilhada por vocês há assim tanto tempo?

Afonso Rocha: Também é por isso que as aves limícolas são fantásticas. São aves que durante a sua (longa) vida podem percorrer milhares de quilómetros entre os locais de reprodução no Ártico e os trópicos onde passam o Inverno. Uma das aves com maior longevidade no meu historial de anilhagem é um borrelho-de-coleira interrompida (Charadrius alexandrinus) com 14 anos. Esta ave foi anilhada como cria nas salinas do Samouco em 1996 e controlada por mim até 2010 na mesma área. Contudo, a ave mais antiga que recapturei até hoje foi um garajau (Thalasseus sandvicensis), com 23 anos. Foi anilhado ainda em cria no ninho no Sul de Inglaterra em 1986 (tinha eu 5 anos!) e posteriormente recapturado nas salinas do Samouco em Setembro de 2009. Quem trabalha com aves marinhas os recordes de longevidade são muito mais impressionantes.

Ricardo Jorge Lopes: As aves limícolas, em particular, têm uma longevidade maior do que o esperado para o seu tamanho, o que é um facto muito interessante, especialmente tendo em conta que são na sua maioria espécies migratórias. De notar que para o fuselo o registo mais longo é de 33 anos e 1 mês. Durante as minhas anilhagens, os registos de recapturas mais longos são de aves limícolas e este é o registo mais longo que tenho. Curiosamente, os três registos mais longos foram em Vale de Frades. O segundo é de um pilrito-de-peito-preto, anilhado na Inglaterra (1992) e recapturado com 9 anos em Vale de Frades (2002). É interessante que o terceiro registo mais longo seja de um alfaiate que recapturei em Outubro de 2016, que tinha sido anilhado no ninho na Holanda, logo após nascer, 8 anos antes (1998). Olhando para os registos que tenho, também é interessante um registo de uma captura de um pilrito-de-peito-preto, que foi anilhada na Polónia e 22 dias depois estava a ser capturada por mim no estuário da Figueira da Foz ou outra recaptura de outro Pilrito-de-peito-preto anilhado por mim em Marrocos em 2013 e recapturada pelo Afonso Rocha nas salinas do Samouco em 2017.

W: Qual o objectivo da anilhagem destas aves no Estuário do Tejo?

Afonso Rocha: Nos últimos anos temos marcado muitas espécies de aves limícolas com anilhas coloridas, o que permite controlar as aves sem ter de as recapturar. Qualquer pessoa pode participar, basta anotar a combinação de anilhas coloridas (e ainda a espécie, o local e a data) observada ou através do registo fotográfico e reportar essa informação ao Cempa ou diretamente ao responsável do projeto de marcação. O acumular da informação recebida permite-nos estudar e conhecer melhor os movimentos diários das aves, a sua migração ou os locais paragem entre o estuário e as áreas de reprodução. Esta informação é fundamental para os programas de conservação das espécies.

Ricardo Jorge Lopes: Por exemplo com esta recaptura, em conjunto com outras similares, conseguimos perceber que estas aves são fiéis a vários locais ao longo da sua migração, desde a tundra (esta espécie nidifica no norte da Escandinávia e da Russia) até aos estuários nas zonas temperadas e tropicais (esta espécie inverna principalmente ao longo da costa Atlântica africana). Daqui podemos inferir que estas zonas húmidas (Samouco e Vale de Frades) são bastante importantes e a sua degradação pode ter um impacto negativo nestas aves. Também é possível monitorizar a longo termo flutuações na sobrevivência destas populações a partir do número de recapturas.


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Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.

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